Cristine Zancani (*)
Acredito no diálogo como um caminho para os mais diversos aprendizados, mas vou refletir aqui sobre a importância do diálogo para a resolução de conflitos. Creio que uma criança que é educada pela força da palavra, não pela força física, vai aprender a contornar seus problemas e divergências fazendo uso de sua voz.
Aqui em casa, minha filha tem voz. Tudo entre nós é conversado, debatido, argumentado. Isso serve para as horas boas e não tão boas, incluindo aí aquelas onde, por um motivo ou outro, tenho que endurecer para manter a minha fama de mãe. A cada conversa, a gente percebe a criança tendo uma resposta coerente para tudo. Ao mesmo tempo que a gente maldiz isso, a gente pensa com orgulho: tem dado certo.
Nem sempre a as crianças têm na escola o mesmo tempo/direito de expressão que têm em casa. Em muitas escolas, os alunos têm um papel coadjuvante não só no processo de aprendizagem, mas também no uso da fala para o estabelecimento de regras ou resolução de conflitos. Em quase todo o tempo que dura a aula, eles são ouvintes.
Na escola da Clara, a Projeto – pode ser que isso aconteça em outras escolas, mas falo aqui da que eu conheço de perto -, as crianças têm voz. Elas têm voz tanto na construção do conhecimento – uma vez que o conteúdo é ensinado a partir das suposições prévias que elas fazem sobre ele -, como também na discussão a respeito das normas da turma, dos problemas enfrentados no grupo e das soluções para esses problemas. Isso ocorre em reuniões denominadas Assembleias.
Nas Assembleias, as crianças são protagonistas. A professora acompanha o processo, intercedendo quando for preciso e amarrando as falas trazidas por elas. Uma Assembleia começa pelo apontamento, feito pelas crianças, dos problemas que identificam no grupo. Elas são ensinadas a não citar nomes. Não devem dizer, por exemplo: “fulano corre na escada”, mas: “a turma está com um problema de corrida na escada”. Esse aprendizado se faz com certos percalços, mas se faz. A partir de então, elas começam a sugerir formas de solucionar a questão, até que a forma que pareça melhor para todos seja escolhida. Ao longo da Assembleia, os problemas detectados são colocados em um envelope onde se lê “problemas”, que fica colado na sala. A partir do momento que essas questões são solucionadas, passam para o envelope dos “problemas resolvidos”. Problemas e soluções tornam-se palpáveis e visíveis.
Quando a Clara estava no segundo ano, na turma da professora Graça, um problema detectado na Assembleia me ensinou muito. Na hora do recreio, no pátio, vinha acontecendo uma situação delicada. Quando um grupo de crianças já estava brincando, se uma nova criança chegava e perguntava “- Posso brincar?”, geralmente, ouvia um “- Não” como resposta. Como poderia ser solucionada essa questão, que sempre magoava a criança excluída? Entre várias sugestões, a vitoriosa foi a seguinte: ninguém mais pediria licença para brincar. Do momento da Assembleia em diante, estava decidido: quem quisesse participar da brincadeira, anunciaria aos demais “- Estou brincando”.
Nesse parágrafo, um parêntese: no cotidiano, reparo que minha filha se habituou a procurar o que é melhor para todos. No dia que ouviu que muitas músicas dos Beatles, por conta de um acordo, eram assinadas em dupla por Lennon e McCartney, independente de qual dos dois as criasse, achou injusto: “- Afinal, tinham quatro pessoas na banda. As músicas deveriam ser assinadas por todos. Os outros tinham que ganhar o mesmo que eles”. E haja conversa para tentar explicar o porquê do acordo. A conclusão? “- Faltou uma Assembleia entre os Beatles”. Quem sou eu pra discordar? Let it be.
Fechado o parêntese, voltemos ao episódio que relatei. Como terminou a questão discutida na Assembleia? Nunca mais uma criança ficou de fora de brincadeira alguma. O ano terminou com o envelope dos problemas esvaziado e com crianças sendo ensinadas a analisar seu comportamento, falar sem apontar culpados, se ouvir e buscar soluções baseadas no bem comum. Penso que nós, adultos, estamos precisando voltar para a escola. Não para qualquer escola, mas para uma escola assim. Por fim, na entrelinha dessa Assembleia, tem uma lição para a vida. Viver, de um lado, é saber anunciar com determinação: “Estou brincando” ou ” Saí da brincadeira”; de outro, saber ouvir e acolher essas duas escolhas.
(*) Cristine é mãe da Clara, aluna da turma 32 da Projeto.