Virgínia Verissimo
O que faz com que nos lembremos de uma professora ou um professor por toda a nossa vida? A sua eloquência e a capacidade de se comunicar bem com as crianças? É aquele que traz materiais para a sala de aula que chamam à atenção? É o que sabe planejar atividades envolventes? Sem dúvida nenhuma, tudo isso é imprescindível numa sala de aula. E essas questões sempre estão presentes no meu cotidiano, desde quando atuava como professora na educação infantil, depois no ensino fundamental e, atualmente, como coordenadora pedagógica dos anos iniciais do fundamental. A reflexão sobre o que é importante na profissão de educador é necessária e precisa ser encarada como uma ferramenta de trabalho para se atuar em sala de aula. Percebi, com o tempo e a experiência, que professores e professoras que marcam a história das crianças, geralmente, são pessoas que, além do conhecimento, recorrem a outros recursos que vão muito além da formação acadêmica.
Sempre que penso nesse assunto, faço questão de lembrar minhas próprias vivências, como estudante, mas sem aquele sentimento nostálgico de que no meu tempo era melhor… Quando lembro alguma situação escolar, quase sempre, é para conseguir pensar como se fosse uma criança, colocando-me no lugar dela para poder rememorar como me senti quando precisei enfrentar determinado fato ou o que o adulto fez naquele momento e que reação causou em mim. Sempre tive essa preocupação, talvez por alguns acontecimentos marcantes que vivi na escola e que só mais tarde, já com a maturidade, pude entender melhor.
Um deles, e do qual me recordo bem, foi quando já tinha uns onze anos e fui chamada no Serviço de Orientação ao Estudante, o famoso SOE, para conversar com a orientadora educacional. Eu era bastante tímida e, um pouco assustada com a situação, pensava no caminho o que teria feito de errado para ser chamada naquele setor, pois quando algo de grave acontecia, era para lá que iam as crianças. A orientadora me perguntou como me sentia na escola e outras coisas, que não lembro tão bem. No entanto lembro o clima daquela conversa e de falarmos sobre sentimentos que adulto algum havia conversado comigo até então. Ela falava sobre a difícil fase de crescimento que eu enfrentava. Eu, menina franzina, com alguns sinais da puberdade despontando e estrábica, que mal conseguia mirar meu olhar no dela, só pensava em como ela poderia saber de tudo aquilo e, sobretudo, para minha felicidade, identificar-se comigo, lembrando de sensações semelhantes às que eu estava vivendo naquele momento. Vivia uma angústia tão natural para a idade, mas que, para mim, era um grande problema. Eu me sentia muito diferente das outras crianças e pensava que os adultos já nasciam prontos e que tudo estava muito bem resolvido para eles. E, então, o meu problema se tornara mais leve com aquele olhar tão empático da orientadora, sem eu ter falado uma palavra sobre isso. Eu me perguntava como é que ela poderia saber tanto sobre mim? Havia prestado atenção em mim, e aquele meu sofrimento, que pensava conseguir esconder tão bem atrás dos óculos, estava tão explícito para ela.
Depois, como professora de uma turma de 1º ano, fui surpreendida com o relato de uma mãe, em uma reunião, sobre seu filho, que tinha algumas questões de aprendizagem. Ele havia contado em casa: agora já sei ler, porque a professora jogou um pó mágico em mim! Eu não havia falado nada a esse respeito e aquilo foi uma novidade que me fez pensar sobre a minha atuação como professora. Pensei que as crianças e, especialmente aquele menino, entendem de outra maneira, demonstrando sensibilidade suficiente para perceberem todo o investimento dos professores e professoras. Ele tinha colocado em palavras toda a aposta que eu havia feito nele: os momentos em que fiquei junto dele encorajando-o a escrever do seu jeito, valorizando o que havia conseguido perante o grupo e desafiando-o a avançar em suas hipóteses. Isso ficou mais evidente somente quando tive esse retorno da família.
Hoje, na coordenação, busco mostrar para as professoras com quem trabalho diretamente a importância do papel que temos na escola e do “feelling” que temos de desenvolver para atender, em uma mesma sala de aula, as diferentes demandas. Convivendo nesse mesmo espaço temos crianças que precisam de certa rotina no decorrer das aulas, como também crianças que apresentam mais rigidez e precisam saber lidar com o imprevisível, com algo que não dominam, além de também demonstrarem diferentes níveis de conhecimento. Como dar conta de tudo isso e, ainda assim, garantir que realmente aconteça aquilo a que nos propomos? Como propiciar a emancipação de cada uma das diferentes crianças que temos na sala através da aprendizagem, tornando-a prazerosa e com sentido? Temos de olhar cada uma delas, como única, muitas vezes esquecendo diagnósticos e buscando nelas mesmas as suas possibilidades e o que têm de melhor.
Assim, com esse pensamento e já como coordenadora, foi que pude receber em uma das turmas, um aluno pra lá de especial, que ensinou a todas as pessoas da escola, professoras e professores, monitoras e funcionárias, a prestarem mais atenção aos detalhes, porque ele se comunicava com os olhos. Seus movimentos corporais eram restritos e, para entendê-lo, tínhamos que fitar seus olhos e nos conectarmos a cada movimento do seu rosto, esperando uma resposta. Esse menino nos ensinou também que, para sabermos mais sobre as crianças, precisamos observá-las e darmos o tempo necessário para que elas possam nos dar o retorno. Retorno este que nem sempre é o esperado e, sim, o que elas podem, o qual, por sua vez, é matéria-prima para o nosso trabalho, como educadores, de desafiar a criança, entendendo que existem diversos caminhos e maneiras para chegar ao conhecimento.
O olhar é poderoso para o professor, não o olhar que julga e intimida, mas sim aquele que ampara, conecta, chama para a responsabilidade e vislumbra possibilidades. O nosso trabalho, e me coloco muito nessa situação mesmo não estando em sala de aula, é olhar para poder escutar melhor o que a criança nos diz, através do seu brincar, das suas atitudes. E, em tempos de altas tecnologias de comunicação, das quais certamente devemos tirar proveito, inovar na educação também pode ser apostar na simplicidade do olho no olho.