Claudia Spieker Azevedo
Oh! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
(Casemiro de Abreu)
Sabemos que conceito de infância é uma construção histórica e social, ou seja, de acordo com o período e/ou cultura o entendimento dessa fase da vida tem diferentes sentidos. A partir do viés histórico verificamos, de acordo com Ariès (2016), que na sociedade medieval o sentimento de infância, isto é, a consciência das particularidades dessa etapa não existia. Assim que as crianças podiam viver sem necessitar dos cuidados constantes das mães ou de suas amas, elas ingressavam no mundo adulto e ali permaneciam. Além disso, em função de doenças incuráveis, muitas morriam e o fato de que logo outro filho nasceria para ocupar o lugar do que tinha falecido era socialmente aceito.
Já nos séculos XVI e XVII, ainda segundo o autor, um novo sentimento em relação à infância surgiu. A ingenuidade, a graça e a gentileza das crianças passaram a ser consideradas como forma de distração para os adultos, o que dá origem a uma outra maneira de se relacionar com elas chamada de “paparicação”. Esse novo sentimento, que nasceu no meio familiar e que inicialmente pertencia às mulheres que se ocupavam diretamente em atender as demandas infantis, provocou reações críticas. Os moralistas e educadores do século XVII, preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes, buscaram compreender de forma mais efetiva a mentalidade infantil para adaptar os métodos educativos.
E na sociedade contemporânea, qual é o seu sentido? Diversos estudos apontam o valor das primeiras vivências, bem como revelam as características peculiares desse período inicial. Porém, os adultos, mesmo conhecendo essas particularidades e tendo acesso a diversas pesquisas que enfatizam a importância brincar, acabam negligenciando o que é fundamental para as crianças. Preocupam-se em selecionar cursos, providenciar o transporte para as diversas atividades, comprar aquele brinquedo tão desejado, sem se questionarem sobre o que estão fazendo. É evidente que a nossa sociedade mudou, que as necessidades de um sujeito em formação são distintas das exigidas há alguns anos, mas será que ele tem que assumir tantos compromissos desde tão cedo?
Mia Couto (2011) nos presenteia com uma definição tão poética quanto instigante: “a infância é quando não é demasiado tarde. É quando ainda estamos disponíveis para nos surpreender, para nos deixarmos encantar”. Quanto encantamento observamos nas brincadeiras infantis! O envolvimento das crianças nos diferentes enredos do faz de conta possibilita que, enquanto protagonistas, vivenciem diversos papéis e assim, gradativamente, compreendam o mundo em que vivem. Com naturalidade utilizam objetos de diferentes maneiras, transformando-os em elementos fundamentais na construção de cenários que criam uma atmosfera mágica a partir da imaginação.
Por outro lado, percebemos que muitas vezes, como pais e mães, atribulados com as exigências do cotidiano, acabamos não nos deixando encantar pela magia do jogo simbólico infantil, revelado de forma tão espontânea. Parece que nos cegamos, ocupando-nos de forma excessiva com a organização da agenda com uma série de atividades para as crianças. Além disso, permitimos que a tecnologia invada o espaço familiar, tornando-se parceira no processo educativo como importante, quase principal, instrumento de entretenimento.
Não estamos negando a importância da tecnologia, pois temos acompanhado os avanços por ela impulsionados em diversos setores, mas talvez devêssemos nos perguntar se é desde a mais tenra idade e com essa intensidade que os atrativos tecnológicos têm de ser ofertados a elas. Não estamos também desconsiderando a importância da organização da rotina diária, pelo contrário temos consciência de que o ritmo que embala o cotidiano infantil é estruturante do psiquismo. Estamos, sim, buscando abrir um espaço para a reflexão sobre o que as crianças estão vivenciando, quais são as experiências que estão tendo. Quanto tempo brincam durante o dia? Qual é o enredo principal do faz de conta de nossos filhos e filhas? Quando subiram em uma árvore pela última vez?
O olhar sensível, a escuta atenta e a sensibilidade do adulto ao observar e valorizar as sutilezas e os detalhes do universo infantil são ingredientes imprescindíveis para que se estabeleça um encontro. Um encontro no qual a criança possa se sentir amparada por alguém comprometido com as suas reais necessidades, que lhe oportunize vivências enriquecedoras do brincar e do inventar mundos, que se transformem em memórias preciosas.
E pra você, qual é a essência da infância?