Deborah Vier Fischer (*)
Vivemos um momento em que, lentamente, tem havido uma mudança de visão acerca das populações indígenas e uma desmistificação de ideias historicamente construídas e transmitidas. Essas mudanças têm acontecido graças à presença e à participação de indígenas ocupando diferentes lugares da sociedade. Com isso, abrem-se novas e importantes possibilidades de ampliação de políticas públicas de atenção e de inclusão desses povos, na perspectiva de reparação histórica.
Nesse sentido, a escola pode ser uma importante aliada, colaborando para que esse movimento ganhe força. Trazer algumas dessas pessoas que vêm se destacando na luta pela questão indígena, por exemplo, para alunos e alunas conhecerem, pode ser um bom começo. Além disso, rever o trabalho da escola com as chamadas datas comemorativas, pensando-as para além de festejos e comemorações que, na maioria das vezes, pouco ou nada têm a ver com a realidade das comunidades atendidas e que acabam se tornando uma prática estática, rasa de conhecimento, que reforça imagens estereotipadas de determinadas culturas, pode ser um chamado importante para um pensamento pautado na perspectiva de um olhar e de ações que se aproximem, cada vez mais, de uma prática decolonial.
Célia Xakriabá, em seu texto Amansar o giz, traz essa ideia de modo brilhante, quando diz:
“Reconhecer a participação indígena no fazer epistemológico é contribuir para o processo de descolonização de mentes e corpos, desconstruindo o pensamento equivocado de que nós, indígenas, não podemos acompanhar as tendências tecnológicas, ou qualquer outra coisa que exista fora do contexto da aldeia e da ideia de que não seríamos capazes de ocupar tais lugares” (2020, p. 112).
Pensando dessa forma, as professoras de 4º ano da Escola Projeto, de Porto Alegre/RS, Amanda Rodrigues Mendonça e Luísa Abrunhoza De Martini Duarte, iniciaram uma sequência de trabalho, apresentando às crianças, semanalmente, durante o mês de abril, conhecido como o mês dos povos indígenas, uma referência indígena brasileira ou um grupo indígena, trazendo outros modos de pensar a nossa relação com a terra, a arte, a cultura, o território. Importante situar que essa iniciativa se soma ao currículo da escola que prevê, em todas as etapas da educação infantil e do ensino fundamental I, em diferentes momentos do ano, o estudo da temática indígena, africana e afro-brasileira, em acordo com a Lei Federal 11.645/08. Para se ter uma ideia, em 2023, toda a escola esteve envolvida com o estudo da obra do artista visual Xadalu Tupã Jekupé, (Dione Martins), cuja presença, em diferentes momentos e a partir de propostas diversas, colaborou significativamente para uma mudança em modos de pensar e de entender a temática indígena e as questões que a movimentam.
Entendemos, como educadoras e educadores comprometidas(os), que a história precisa ser contada de diferentes pontos de vista e por diferentes vozes, e que é necessário mais, muito mais do que se tem feito. É preciso também colocar em questão a data de 19 de abril, por exemplo, conhecida no Brasil como o “dia do índio”, e ampliar o trabalho da escola para o entendimento de algo maior: do estudo de uma população que teve a sua história apagada e invisibilizada em detrimento de uma história branca, europeia, ocidental, que não é, necessariamente, a história do nosso país, pelo menos, não é a única história do povo brasileiro.
Assim, através de tarefas de casa e de leituras, conversas, apreciação de imagens e de vídeos em sala de aula, os alunos e alunas tiveram a oportunidade de conhecer referências culturais, sociais e políticas como Ailton Krenak, escritor e pesquisador, líder indígena e ambientalista (recentemente empossado como imortal na Academia Brasileira de Letras); Daiara Tukano, do povo Tukano, do Amazonas, artista visual e ativista indígena, nascida em Brasília; Denilson Baniwa, do povo Baniwa, nascido na beira do Rio Negro, no Amazonas, também artista visual e ativista, que coordena a rádio Yandé, propagadora da cultura indígena fora das aldeias; Daniel Munduruku, escritor de literatura infantil e infanto-juvenil, que esteve na Escola Projeto em 2017, por ter sua obra estudada pelas turmas naquele ano, e que tem sido uma importante referência para contar histórias do seu povo Munduruku (PA). Nessas andanças, com a escola, conhecendo personalidades indígenas, não teria como deixarmos de fora o cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, nascido no Mato Grosso, indicado ao Prêmio Nobel da Paz (2020), defensor dos povos indígenas da Amazônia, e Sonia Guajajara, do povo Guajajara, do Maranhão, representante feminina, liderança indígena política, que atualmente ocupa o cargo de 1ª ministra do Povos Indígenas do Brasil. Davi Kopenawa e seu importante livro a Queda do Céu: palavras de um xamã yanomami, Ed. Companhia das Letras/2015, também é um autor indígena que colaborou para uma aproximação nossa aos saberes do povo Yanomami e à sua relação com a terra e a ancestralidade.
Diversas outras pessoas poderiam ter sido trazidas à reflexão, mas como tudo o que envolve a educação, é preciso fazer escolhas, a fim de garantir o tempo didático para uma exploração mais aprofundada. Sabemos que uma pedagogia preocupada em garantir movimento e transformação de pensamento não pode se conformar com uma apresentação rasa da história de um lugar ou de uma população. É preciso realizar um corte profundo, algo como um movimento arqueológico, como diria Michel Foucault (1986), no sentido de trazer à reflexão e tornar visível a complexidade do que envolveu e segue envolvendo a presença indígena no Brasil. Desse modo, operando com saberes não-ditos, trazendo à tona uma camada de discursos soterrados pelo enunciado de uma história única, conseguiremos, quem sabe, pensar a educação e a escola, em especial, como espaço de rupturas e exercícios de descontinuidades, e não mais como detentora da verdade e do conhecimento como vias de mão única.
E, quando abril terminar, o que será da temática indígena na escola? Seguirá presente, acesa e intensa, assim com as demais temáticas que envolvem uma escola que pensa a educação no tempo presente, rumo ao futuro que se apresenta logo ali. Isso porque é preciso começar de algum lugar, descalçar os sapatos usados para percorrer caminhos já conhecidos, deixando os pés tocarem o chão do território, conforme Xakriabá (2020).
Abrir caminhos, pequenas travessias, fazer pontes entre culturas distintas, invocar saberes ancestrais, ampliar modos de ver, pensar e conhecer são ações que caminham na direção de uma prática decolonial. E a escola não pode se eximir desse compromisso. Não mais!
(*) Coordenadora pedagógica da Escola Projeto.
Referências Bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1986.
XAKRIABÁ, Célia. Amansar o giz. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 14, p. 110-117, jul. 2020.
Fontes da imagens das obras de arte usadas acima:
DENILSON BANIWA – “Curumin, Guardador de Memórias”, 2018, acrílico sobre tecido – 1,60 m x 2,00 m
https://www.premiopipa.com/denilson-baniwa/
DAIARA TUKANO – “Kahtiri wii”, 2023, acrílica sobre tela, 1,80 m x 2,90 m
https://www.premiopipa.com/daiara-tukano/