Celso Gutfreind
“Chegou ao fim a era das bonecas com traços realistas, época em que os adultos pretextavam supostas necessidades infantis para satisfazer as próprias necessidades pueris”. (Walter Benjamin)
Mãe e pai fazem muita besteira com seus filhos. Isto ocorre todos os dias, já começa de manhã. Naturalmente, como o sol, mas aí parece chuva: os filhos vieram de dentro da mulher, que veio da costela do homem, segundo a Bíblia. Ou do mais profundo narcisismo e desejo egoísta de imortalidade, segundo a psicologia. De uma ou outra, não poderia dar boa coisa. Mas dá, se o nível de exigência baixa a bola. Bola serve para filho brincar sem serventia.
Ser mãe e pai estende a luta para melhorar. Tentar sair da própria costela e chegar ao outro no que ele é realmente. E não o que pai e mãe desejavam que fosse quando sonharam outra vida (a do filho) para realizar o que não puderam com as suas. Filho não conserta pais.
Mas os filhos vieram do narcisismo e ali surgiram para completarem a falta. Como suportar que eles se separem e sejam independentes? Só o amor, este cuidado do outro pelo outro, poderia cumprir o desafio, nunca sem dor durante.
Toda luta se faz com batalhas perdidas. Como na guerra, mas uma história de amor custa mais, porque é mais difícil construir do que destruir.
Pai e mãe fazem muita bobagem, desde o começo. Mas não pode alguém de fora dar palpite, medir competência, criticar. O Mandela disse que não bastam mãe e pai para criar um filho, precisa uma comunidade inteira. Concordo, mas não se pode confundi-lo com palpite, invasão, atropelamento. A aldeia oferece os ombros, não o cérebro. A acolhida, não a interferência. Concede o coração para estimular o coração. Mãe e pai precisam pensar por si mesmos e confiar em suas capacidades, por mais ínfimas e lentas que elas sejam. Somos lentos e ínfimos até que se inaugure o instante fugidio da suficiência.
Mãe e pai estão sempre a caminho e necessitam de quem acredite neles. Precisam buscar, de dentro para fora, a intuição de ver se menosprezaram um sentimento de filho. Ou hipervalorizaram. Se foram rígidos ou frouxos, deixaram muito, toleraram pouco. Em sua linguagem metafórica, a Bíblia não se manifestou diretamente a respeito, mas a psicologia não hesitou em dizer que, no fundo, ser mãe e pai é impossível.
Não sejamos tão radicais: se tem amor, metade do copo está cheia. Se não tem desconfiança, preenche-se a outra metade, e mesmo a garrafa inteira. Haverá sempre uma dose de acertos, outra de erros, e amor de mãe e pai precisa ser elogiado para pensar que os acertos são maiores. Os erros podem ser tolerados, por mais que doa na costela. É dizer a ela que vai melhorar, e volta a ficar durinha. O narcisismo amolece.
Também há quem nunca duvide de si e se considere sempre certo. As consequências aparecem, mas se pode chamar o Mandela, a escola, a paróquia, trazer a comunidade inteira e mostrar à criança que a vida vale à pena, apesar de imperfeita, como os seus pais.
(*) Do livro A Dança das palavras – poesia narrativa para Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 42 a 44.
Ilustração: Snezhana Soosh