Cristine Zancani (2) e Fernanda Lantz (3)
Diário de Bordo 1 – Viagem ao redor das histórias
Em roda, cada um disse seu nome. Então, as crianças que já faziam parte da oficina no ano passado, apresentaram a mala.monstro para os(as) colegas novos(as). “Ela tem catapora na boca!”, “eu que pintei esses dentes nela”, “Ela tem fígado, e um coração que bate e se abre”, “Ela é manca”, “quase não tem alça, às vezes a alça cai, outras emperra. Ela faz o que quer, tem vida própria”, “Bem aqui, nessa estrela, tem minha primeira costura, foi quando eu perdi o medo da agulha! Tem a marca da minha coragem!”. O olhar atento de todos dava a devida importância desse momento.
Mala monstro e viajantes devidamente apresentados, chegou a hora de preencher o cartão de embarque. O pedido foi: escrever ou desenhar uma história que tivesse lhes marcado. Poderia ser de livro, um acontecimento real, um filme, uma história escutada. E teve de tudo! História de antes de nascer, história de chegada de mansinho, de sonho. Apareceram nomes e desenhos dos livros preferidos e histórias de primeiras vezes. Depositaram o cartão na boca da mala e as crianças em coro começaram a contar: 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1 – decolar! Voamos até “O melhor livro do mundo”, escrito e ilustrado por Canizales.
Na obra, um menino se surpreende ao descobrir que seus brinquedos, seus objetos pessoais e até seu lanche estão sendo devorados por um livro. As crianças acompanharam cada abocanhada, tentando decifrar o motivo pelo qual isso estava acontecendo. Até que: o próprio menino é engolido! A partir disso, nascem do livro vários livrinhos inspirados nos brinquedos que haviam sido abduzidos.
Não vai ser possível contar as muitas hipóteses e a profundidade da reflexão que as crianças atingiram, enquanto se divertiam tentando entender a história. A verdade é que elas chegaram muito perto e muito além do que o livro propõe. Encerramos a leitura entendendo que o menino, assim como cada um de nós, é o protagonista de muitas histórias. Que contamos histórias o tempo inteiro, que os objetos também contam histórias e que as histórias podem estar nos livros, nas letras, nas ilustrações, nas vozes, nos filmes, na natureza e principalmente no pensamento e imaginação.
Nesse clima inventivo, as crianças foram para o pátio. O nosso intervalo, de brincar livremente, é momento fértil e importante da nossa viagem. Muito se segue elaborando no corpo e pelo jogo simbólico.
Quando retornamos para a sala pedimos que, em grupo, criassem a capa de um livro que imaginassem juntos. Não por acaso, as crianças se agruparam conforme as brincadeiras no pátio. Não por acaso, as histórias inventadas contavam sobre as brincadeiras. Não por acaso, as brincadeiras, os desenhos e os traços, contavam de cada um – e de todos.
Diário de Bordo 2 – O que guarda a entrelinha de um pontinho de costura?
Vez em quando, nossos encontros terminam com as crianças deixando marcas da nossa viagem na mala. Tem espelho lá dentro dela (e é bonito pensar que no interior da mala.monstro todo mundo se vê refletido); tem coração de pano transbordando entre os fechos; tem tecido com personagem misteriosa desenhada na visão de cada um/uma; tem estrelas vindas de alguma viagem por planetas malucos. Dentro de uma dessas estrelas mora um pontinho de costura, que pode parecer só um pontinho, mas é muito mais do que isso. Esse pontinho, feito de linha rosa, tem a entrelinha mais bonita de todas. Eis sua história: era uma vez um dos nossos viajantes que tinha muito medo de agulha – fato que descobrimos quando inventamos uma atividade em que as crianças tinham que costurar o nome de uma lenda em um tecido. Enquanto o grupo costurava, esse menino pediu pra fazer outra atividade, porque temia espetar o dedo na agulha. Então, ele escreveu o nome da sua lenda preferida em um papelão, tendo o seu medo e o seu tempo respeitados. Quando sentiu que foi respeitado, começou a se sentir em segurança e foi incentivado a tentar dar um pontinho de costura. Sim, o pontinho que mora na estrela. Semana passada, esse menino apontou para estrela e contou para a turma: “essa estrela guarda a história da minha coragem”.
Tem frase mais bonita?
A gente passa os encontros estimulando que as crianças vejam camadas mais profundas – além do que é aparente nos textos. A gente também insiste que todas as coisas guardam histórias e que a gente pode atribuir novos significados a qualquer coisa. Dependendo do ponto de vista, um pontinho de costura passa a significar um grande gesto de coragem. Dependendo do ponto de vida (porque vai bem além da vista), um único pontinho traduz os significados mais profundos das nossas viagens.
Da série: marcas da mala.monstro
(1) Mala.monstro é o mote da oficina Viagens literárias, coordenada por Cristine Zancani e Fernanda Lanz na Projeto, semanalmente. Ainda há (poucas) vagas! Saiba mais: https://www.escolaprojeto.g12.br/vivencias-literarias/
(2) Mãe de ex-aluna, Cris é Doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS. No mestrado, dedicou-se à pesquisa sobre literatura infantojuvenil, enquanto atuava em um projeto de formação de leitores literários na periferia. No doutorado, sistematizou sua experiência de 10 anos de atuação nesse projeto, refletindo sobre a formação de mediadores de leitura para formar leitores. Atualmente, ministra cursos sobre literatura infantojuvenil, realiza trabalhos para editoras e segue atuando em projetos de formação de leitores e de mediadores de leitura.
(3) Mãe de aluno, Fernanda Lantz é Pedagoga Especial, Psicopedagoga e arte terapeuta. Trabalhou com contação de histórias e oficinas em diversos projetos comunitários. Nos últimos anos, atuou na biblioteca de uma escola municipal, como professora/mediadora de leitura. Trabalha no atendimento educacional especializado (AEE) da Escola Projeto, atende na clínica psicopedagógica, realiza trabalhos para editoras e projetos culturais.