Celso Gutfreind (2)
Constato em Nava como é importante “o grupo”, a “geração”, a AMIZADE
– que ele inscreve em caixa alta em O círio perfeito.
Afonso Romano de Sant’anna
Uxbal, personagem vivido por Javier Bardem, vive de trambiques, em Biutiful. A mulher sofre de problemas mentais, e ele cria os dois filhos. A Barcelona em que vive não está no cartão postal; não se vê o bairro Gótico e nem o azulão da rambla. Aqui lembra outro filme, o La Haine, de Mathiew Kassovitz, que tinha como cenário um subúrbio desfavorecido da região parisiense. A Torre Eiffel era vista borrada, ao fundo da tela, símbolo de uma Paris com a luz acesa e cercada de bairros escurecidos pela exclusão.
Biutiful se passa, no mesmo subúrbio europeu, com africanos e chineses ilegais, com quem Uxbal faz as suas mutretas, sem perder a humanidade. Pode estar ali o tema central da trama: em meio ao entorno selvagem, resta alguma sensibilidade na relação entre pais e filhos. Mesmo doente, o pai não deixa de acompanhar as lições da filha mais velha e dar limites ao mais novo.
São momentos onde entram as mãos do diretor Alejandro González Iñarritu. Seu toque especial faz de Biutiful uma obra aberta a outros olhares. Bruno Bettelheim havia detectado esta qualidade nos contos de fada e pode valer para qualquer arte. Quando as obras acertam no símbolo, cada um lê do jeito que precisa. A vida crua é pesada. Necessitamos de metáforas. Nos livros e fora deles.

A passagem de Biutiful que encontro vem das cenas em que Uxbal, cada vez mais enredado, procura uma amiga para conversar. Ela, simplesmente, ouve aquela vida enrolada. Dá palpites, aponta caminhos, mas o essencial, à minha leitura, está em escutar o amigo.
Localizo ali a parte mais importante do filme para os dias de hoje ou, pelo menos, para esta leitura. Como faz um homem com câncer terminal, mulher louca, negócios escusos, filhos ameaçados pela orfandade, para imprimir algo de vida na sobrevida que lhe resta? Para ainda encontrar momentos prazerosos (vivos) junto aos filhos, aos colegas e, até mesmo, com a mulher ensandecida? Para cavar, com a filha, a possibilidade de que ela não se esqueça dele e, de certa forma, possa manter viva a imagem de um pai, depois de sua morte? O filme, por ser bom, não responde, mas desconfio de que a amiga tem uma participação fundamental.
Ela arma a rede que a ciência tem sugerido como decisiva de um destino mais digno para todos, filhos, alunos, pacientes. Ela oferece a matriz de apoio, de Nelson Mandela e Daniel Stern, ao reconhecer que não bastam mãe e pai (ou professor) para criar uma criança, é preciso um punhado de arte e uma comunidade inteira. Ou, pelo menos, um amigo.
Ela tece o fio em que Uxbal, no filme, e todos nós, na vida, nos agarramos para poder viver e morrer melhor.
(1) Texto publicado no livro A Dança das Palavras: poesia e narrativa para pais e professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 122 e 123, reproduzido aqui com a devida autorização do autor e da editora*.
(2) Psicanalista e escritor, colaborador deste blog e pai de ex-aluna da escola.