Luciana Gruppelli Loponte (*)
Durante a quarentena, temos visto muitos filmes. Desde os mais óbvios, os de maior sucesso e bilheteria, àqueles cujos personagens povoam lojas de brinquedos e algumas outras descobertas no oceano de possibilidades dos diferentes serviços de streaming. As crianças passam mais horas do que gostaríamos com desenhos e animações [Obrigada, Peppa!]. Depois de quase quatro meses de isolamento, entre tanta angústia e preocupação, filtros pedagógicos e curadorias construtivas parecem se esvaziar.
Um dia desses, a Escola Projeto nos presenteou com sugestões de filmes garimpadas por aí. Um tesouro. No meio dessa lista, estava “Minha vida de abobrinha”, animação francesa em stop motion de 2016, vencedora do César de melhor filme de animação de 2017. A sensibilidade do filme nos deixou emocionados. E a nossa emoção foi maior ainda porque nosso filho de seis anos se viu ali, de alguma maneira, naquele personagem chamado de Abobrinha, que viveu tantas situações de abandono e negligência.
Nem todas as crianças têm a felicidade de ter uma família biológica que seja ou consiga ser acolhedora, equilibrada, amorosa ou cuidadosa com seus filhos. No filme, essas crianças se encontram em uma casa-lar ou um abrigo, como tantos que existem em Porto Alegre. Cada criança desse lugar carrega uma história que às vezes é muito dura e extrema para sua idade, como pais negligentes, tomados pelo álcool ou drogas, forjados pela violência de uma sociedade excludente e desigual. Nesses espaços coletivos, de convivência com outras crianças, eles constroem outros laços, alguns bons e outros nem tanto. Ali, eles esperam que sua família volte, o que nem sempre é possível ou mesmo desejável. Ou esperam uma nova família: “mas ninguém quer uma criança grande”, diz um dos meninos. Neste espaço, feito para ser transitório (e que nem sempre é), as crianças se sentem, muitas vezes, sozinhas, querendo um cuidado e uma atenção que só uma família amorosa pode dar. Carinho, um beijo de boa noite, um quarto, brinquedos, um abraço apertado ao acordar, alguém esperando na porta da escola. Alguém que se possa chamar com orgulho de pai ou mãe. Tudo tão simples, mas tudo tão raro.
Há várias cenas marcantes e memoráveis no filme, a partir das quais vale a pena pensar junto. Quando, por exemplo, as crianças olham espantadas, quase paralisadas, um menino receber um beijo da sua mãe. Tão simples, não? Ou quando aqueles amigos, solidários com suas dores, querem ficar juntos para sempre, mas, ao mesmo tempo, ficam felizes quando algumas crianças encontram, enfim, uma nova família. A despedida da casa-lar é tocante, ambígua, feliz. A chegada na nova casa, a sua casa, lugar onde pode-se deixar as marcas do crescimento na parede, também. Felicidade que transborda nos olhos. Essa casa é minha?
E, por fim, as crianças que perguntam para a mãe de um novo bebê: e se você abandonar ele? Não, ela não vai abandoná-lo. As crianças insistem: e se ele fizer pum? E se ele chorar o tempo todo? E se ele for mal na escola? E se ele virar um animal? Se ele esquecer o nome dele e tiver chulé? Não, a mãe não vai abandoná-lo, mesmo assim.
Nem todas as mães abandonam e nem todas as famílias se formam do mesmo jeito. Há laços tão fortes, tão fortes, com tanto amor, que uma ligação biológica é um detalhe sem importância. Adoção, uma adoção tardia, cheia de amor, afeto e descobertas recíprocas, pode transformar uma vida de “abobrinha” em uma vida de amor em família. Todas as crianças têm o direito de poder viver em família, não importa como ela seja. Todas as crianças têm o direito a uma nova chance, de um recomeço. Desses novos, amorosos e inesperados arranjos familiares, também fazem parte uma escola, seus professores e professoras, seus novos amigos e amigas, nesse novo lugar para chamar de seu. Nesse novo lugar no mundo, existe uma escola acolhedora e afetuosa que se chama Projeto. Estamos com saudades.
(*) Luciana Gruppelli Loponte é mãe de aluno da Escola Projeto/Ensino Fundamental e professora universitária, Doutora em Educação.