Tatiana Cruz (*)
A primeira vez que eu ouvi a Elena falando mobilidade urbana, dando uma ênfase exagerada a cada uma das sílabas, como se tivesse encontrado um tesouro na rua, percebi que estava dentro daqueles momentos que costumo chamar de momentos “congela a vida”. Sim: congela a vida, para tudo, presta atenção. Se uma epifania própria já é uma coisa linda, imagina só uma epifania nascida dessas coisas queridas que a gente vê crescer, dessas pessoinhas…
Elena estava, pois, em chamas! Mobilidade urbana não é um termo que a gente use assim, fácil fácil, na rotina. “Bom dia, filha, como está a mobilidade urbana hoje?”. “Oi, vó, estive pensando que a mobilidade urbana está complicada”. No entanto, naquela semana do primeiro trimestre, às vésperas da Mostra de Ciências da escola, mobilidade urbana era a versão “que tempo louco, hein?” da Elena. Os motoristas de aplicativo que o digam.
Mas deixa eu contextualizar melhor para não parecer papo de louco. Tudo começa com uma escola que apresenta para crianças de 8 anos de idade um tema de estudo com esse nome. Tem quem possa pensar, “Mas, gente, dá um outro nome pra isso, poxa. Eles são pequenos, não vão entender nada”. Se você é uma dessas pessoas, certamente não vai curtir a Projeto. Sabe por quê? Porque a Projeto não subestima seus estudantes. Vai ter mobilidade urbana para eles decifrarem, sim, e, pode acreditar, eles tiram de letra. Eles se apropriam dos termos difíceis, os mastigam e os devolvem com ênfase de quem ama descobrir, conhecer e exibir seus feitos. E como isso acontece? Primeiro, a escola acreditando no potencial de aprendizagem das crianças, segundo, as famílias, que também acreditam, ajudando os pequenos a morderem a isca. Foi mais ou menos assim lá em casa por aqueles dias.
Elena chegou com um tema: precisava de uma notícia sobre mobilidade urbana. Qualquer notícia sobre mobilidade urbana. MOBILIDADE URBANA. Iniciamos juntas a pesquisa, ora usando essas duas palavras, ora cercando o tema com outros termos. E chegamos a algo que Elena julgou incrível, um dado que ela levou pra escola como se levasse um troféu: se a prefeitura de Porto Alegre continuasse no mesmo ritmo de implantação do projeto de ciclovia da cidade usado em 2018, os 495 quilômetros previstos no plano aprovado só seriam implementados de forma integral em 172 anos (1).
Era o que ela mais queria: uma manchete. Uma manchete que tratou de fazer circular em todos os Ubers que pegamos, em todos os passeios de fim de semana, em qualquer encontro com algum parente ou amigo. “Já pensou: nenhum de nós vai existir. O fulano não vai poder ver a ciclovia pronta. A fulana também não”.
Ela passou a olhar para os 2 quilômetros e pouco de ciclovias já criados. Ela passou a observar o trânsito. Ela passou a perguntar: “Mas pra que tanto carro?”. Também pudera: não era só ela mergulhada no tema. Na escola, a Alice trazia das férias na Suíça a experiência de transporte público de qualidade, Alexander vinha com o olhar dos alemães sobre trens e ciclovias… A tal da mobilidade urbana ganhava um corpo próprio entre eles, que reuniram tudo aquilo pra expor pra nós, os adultos, na Mostra de Ciências. Eles “domavam” aquelas duas palavrinhas em um clima de total confiança, de fazer inveja a muito vereador na Câmara Municipal ou a secretários do Executivo que não conseguem juntá-las nem em discurso, imagina só em planos de ações e prioridades.
A epifania da Elena foi perceber que povo morre todo e não vê promessa política virar realidade neste país. Minha epifania sobre a epifania dela foi perceber que uma educação que não subestime a capacidade de aprendizado de uma criança pode criar cidadãos mais atentos a essas falsas promessas. A realidade é um bicho grande, complexo e feroz e requer muita coragem para ser compreendida. A turminha da Projeto já dominou uma parte dessa fera. Que bom!
(*) Mãe da Elena, do 3º ano, e jornalista.
(1) Veja aqui a matéria que serviu de inspiração para a epifania da Elena. Reportagem de Igor Natusch para o Jornal do Comércio, de 28/03/2019, e repare: a foto ilustrativa é da fotógrafa Cristine Rochol, mãe de Antonio, colega da Elena na Turma 32. https://www.mobilize.org.br/noticias/11512/porto-alegre-construiu-apenas-26-km-de-ciclovias-em-2018.html