Celso Gutfreind
“Para a criança, as aventuras do herói ainda são legíveis
no torvelinho das letras como figura e mensagem
na agitação dos flocos.” (Walter Benjamin)
Tudo tem história e se ata a partir de um começo. Depois, desata. Condição de ser, situado no tempo entre antes e depois. Ninguém pode ser alguém sem história. O nada não tem história. E, quando somos, somos alguém. Personagem.
Um leitor, por exemplo, começou bem antes de topar com um livro. Localizo-o careca, sem dentes nem continência esfincteriana, chorão, bebê. Analfabeto de letras, especialista em expressar estados de alma. Escolado em apegar-se, repleto de reflexos e propensões para o encontro. Mas ele ainda não pode estar sozinho. Sequer existe sozinho (Winnicott). Precisa do outro para sobreviver, especialmente se for humano.
Então, o outro chega sob a forma de mãe ou cuidadora, trazendo conteúdos como o desejo, em primeiro lugar. Movida por este sentimento (narcísico), ela corresponde ao apego de forma mais ou menos segura. Quanto mais segura, mais leitura.
A mãe olha.
Sorri.
Aquece.
Canta.
Conta.
Troca as fraldas.
Sobretudo toca a pele.
Chora disfarçadamente ou não.
Maravilha-se e maravilha o bebê, ou seja, confirma a vida de que ele já desconfiava.
Lê o mundo para ele, emprestando a sua capacidade de pensar e sentir (Bion). Torna-o rei do mundo e se mostra imprescindível. Toda mãe é uma leitora a transmitir impressões de relatos, a influenciar a leitura, a fomentar leitor.
A todas essas, um sujeito se constituiu. Se já não era analfabeto dos afetos, agora adquire a fala, precursora da escrita. Da mãe recebeu as maiores lições: amar e ser amado.
Agora está maior e precisando menos da mãe. Por fora. Ela está dentro, onde, aí sim, continua imprescindível. E, sem que ninguém a veja, ele já pode encontrar o livro e fingir, por um instante, que está lendo sozinho. Para sempre.
(*) Do livro A Dança das palavras – poesia narrativa para Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 74 e 75.
Ilustração: Toni Demuro