Rafael Bricoli (1)
Vou relatar nestas linhas um exemplo ilustrativo da distância do lampejo da ideia para a sua concretude final. No caso, vou dividir com vocês um pouco de como foi a construção do trabalho de encerramento do 5º ano, dentro das aulas de teatro, assim como demonstrar todo o fazer artesanal que é construir um trabalho cênico coletivamente. Mas, principalmente, ilustrar todo o percurso empírico entre uma ideia que estava só na minha cabeça, até transformá-la na cena, que foi apresentada no dia 10 de dezembro, no encerramento das turmas.
Os projetos de teatro para as turmas de 5º ano se dedicam à construção de um trabalho cênico mais estruturado. É o momento em que colocamos tudo o que trabalhamos nos anos anteriores, em prática. Mas, para mim, o processo de construção do trabalho final começa muito antes. Quando as turmas estão ainda no 4º ano, eu faço um apanhado de ideias do que eles(as) gostariam de falar no trabalho final do quinto ano. Nessa chuva de ideias, me alimento criativamente com ideias muito mirabolantes. Faz parte da minha função, do meu trabalho, conseguir filtrar e aglutinar essas ideias em uma história. Então deixo essas ideias decantarem em minha cabeça durante as férias. Não raro, há situações em que me pego pensando em algumas ideias das crianças nos meus momentos de descanso, mas deixo para decidir junto a eles(as) no início do ano letivo, quando de fato estão no 5º ano.
Ano passado, entre muitas ideias interessantes, surgiu a da peça ser sobre um grupo de teatro. Um teatro dentro do teatro, numa espécie de metateatro. Essa foi a ideia que pincei dentre tantas outras.
Quando iniciamos o trabalho do 1º trimestre, de fato eu não sabia como seria o produto final, mas tinha uns direcionamentos para o processo. Esses anos todos em sala de aula me fizeram ter olhos e ouvidos atentos para as propostas que aparecem nos ensaios. O foco era esse grupo de teatro e seus conflitos. O grupo de teatro aqui representado era uma metáfora, uma amostra das relações humanas, como um todo. Trabalhamos muitos exercícios de improviso, assim como muitos exercícios de atenção. Nesses exercícios já apareciam personagens, figuras, funções, situações e eu ali, olhando tudo. Descartando algumas coisas, valorizando outras, e o processo seguindo.
Houve um dia, durante um improviso das crianças, que eu tive uma pequena epifania. Sabe aquele momento em que acontece a junção de uma ideia com outra que resulta numa terceira? Foi isso que aconteceu na minha cabeça. Uma cena que uma dupla improvisava, me fez lembrar de um vídeo que eu havia assistido uns dias antes. Era um vídeo aleatório, um trecho de um desenho animado chamado O INCRÍVEL MUNDO DE GUMBALL (2). As ideias não respeitam caixinhas, as sinapses não têm muros, então são livres pra fazer esse tipo de associação. Ali, naqueles minutinhos em que estava acontecendo o improviso, eu tive o vislumbre exato de uma cena do trabalho. Pronto. Temos uma cena legal aqui. Agora falta “só” fazer ela sair da minha cabeça e ir para os corpos daquelas crianças.
A cena que estava sendo improvisada era do diretor do teatro tendo um mini chilique com o elenco. O vídeo do GUMBALL era uma cena em que um personagem pergunta para o universo qual é o sentido da vida. No desenho aparece o sol e os planetas cantando uma música bem niilista e animada sobre essa nossa existência. Na minha cabeça as ideias batiam. Na minha cabeça já havia visto uma cena como um musical, uma quebra do ritmo das cenas anteriores, com todas as crianças cantando e dançando aquela música que falava sobre a vida ser só um grão. Aí começou meu trabalho.

Fui conversar com o Ianes, professor de música, junto com a coordenação para tentar explicar o que eu gostaria de colocar em cena. Mostrei para eles o vídeo, ainda sem muita certeza de como explicar essa ideia. Fui recebido com curiosidade e abertura. E o Ianes topou ensaiar a música com as crianças no 2º trimestre. Não sei se eles entenderam direito o que eu queria com aquilo, não sei se eu mesmo sabia o que eu queria. Mas pronto, uma etapa conquistada. Agora eu precisava convencer (sim, é esse o verbo) as crianças de que a ideia era legal.
Numa das aulas reservadas para a criação do roteiro do trabalho, mostrei para as crianças o vídeo e a ideia da cena. Me surpreendi, pois várias já conheciam a música por assistirem ao desenho, então o convencimento foi bem mais fácil do que eu imaginava.
Durante o 2º trimestre, já estávamos definindo os personagens, os pequenos grupos de trabalho, as situações e aquela ideia do musical sendo deixada para depois. Eles precisavam ensaiar e ter a música decorada para podermos criar a coreografia. No fim do 2º trimestre, reservei uma aula para fazermos a coreografia e deu tudo errado. A questão é que eram duas turmas diferentes, com aulas em momentos diferentes, mas que estariam juntas em cena no mesmo trabalho de encerramento. Como criar uma coreografia ensaiando metade com um grupo e metade com outro grupo? Essa foi uma dificuldade permanente nesse processo, mas, nessa cena em especial, precisava de todo mundo. Aí entra outra dificuldade bem física e concreta: o espaço.
Eu já sabia que iriamos apresentar o trabalho na sala Olga Reverbel, no Multipalco. Que é um espaço amplo e largo. Enquanto que ali na escola temos apenas a sala de teatro ou o palquinho do subsolo para ensaiar, ambos bem pequenos, não cabendo as duas turmas juntas. Aproveitamos um dos sábados letivos para juntar as turmas e poder, enfim, ensaiar essa cena. Usamos a quadra para caber todo mundo e também para ter uma noção de como seria no palco. Enquanto ensaiávamos, começou a chover. É isso, percalços que, de certa forma, também apareciam nas cenas criadas. Eram as dificuldades de que estávamos falando na peça acontecendo na vida real. E tudo, pra mim, fazendo mais sentido.



Mas como sou brasileiro e não desisto nunca, fomos ensaiando essa cena meio picadinha. O Ianes ensaiando a música nas aulas dele, eu ensaiando a coreografia nas minhas aulas, metade com uma turma, metade com a outra, e eu me perguntando do porquê dessa minha insistência nessa ideia tão difícil de colocar em prática.
Chegou finalmente o dia da apresentação. Teríamos, no período da manhã, um ensaio no espaço em que aconteceria a apresentação. Nesse momento, focaríamos nas cenas que envolviam todas as crianças, incluindo a cena do musical. Posicionamos todos(as), repassamos a letra da música (que, a essa altura, já estava na ponta da língua) e relembramos a coreografia. Enquanto estávamos ali ensaiando, me dei conta de todo esse percurso, me lembrei do dia em que fiz a junção de duas ideias aparentemente bem desconexas e que tinham tudo para dar errado. Mas estava ali, dando certo.
O nome escolhido pelas crianças para o trabalho foi “A vida é só um grão – a peça dentro da peça dentro da peça” (3). Um nome duplo, com cara de teatro mais alternativo, exprimia com uma simplicidade a síntese do trabalho. A vida realmente é só um grão, mas pra quem tá atento(a), pra quem tem olhos e ouvidos sensíveis, a vida é muito mais que isso. A vida é um espetáculo.
(1) Professor de Teatro da Escola Projeto e Coordenador das atividades do Grêmio Estudantil.
(2) Vídeo do desenho animado “O incrível mundo de Gumball”:
(3) Vídeo de um trecho da apresentação:
Fotos Fabio Alt