André Klaudat (*)
E em outros tantos lugares? Câmaras de Vereadores, Assembleias Estaduais, escolas, estádios de futebol, igrejas, clubes de tiro, grupos de motociclistas, shoppings, restaurantes etc., etc., o que fazer?
Quanto às manifestações racistas criminosas e injuriosas de estudantes universitários, em especial em suas redes sociais, mas não só, a primeira coisa a fazer é deixar muito claro do que se trata. Este é o nome para o que essas pessoas fazem: cometem crimes e injúrias raciais tipificados e identificados como tais em legislação positiva com previsão de sanções e penas de privação de liberdade. Essas pessoas podem e devem ser punidas, é o que prevê nosso ordenamento legal. Mas para isso devem ocorrer os devidos processos administrativo e penal, como também está previsto e é praticado em países civilizados que respeitam o estado democrático de direito. E duas de nossas universidades (UFRGS e UFSM) anunciaram em notas providências administrativas e judiciais que podem terminar em tais penalizações para ações racistas de seus membros. Instituições têm que cuidar disso bem, mas, como também se costuma dizer, num tempo que é “compatível com a vida”. A Justiça que tarda por demais, para além dos cuidados próprios dessa atividade humana, pode causar estragos irreparáveis, que conhecemos muito bem, podendo ser questionada como provedora de justiça de fato, inclusive como instituição que dispensa tal bem tão necessário para nossas vidas em sociedade.
Mas isso é suficiente? Claro que não. Vou falar somente do que me parece que toca à instituição universidade fazer também. Não é suficiente para uma instituição educacional, responsável em grande medida pelo processo de educar, formar, instruir e civilizar as cidadãs e cidadãos da sua sociedade, que ela anuncie que nela os princípios da diversidade e da pluralidade são constitutivos da sua natureza e que o assédio e a discriminação ferem tais princípios, e que nela, pela sua natureza e propósito, não há espaço para qualquer tipo de preconceito. Não basta exigir meramente uma concordância negativa com valores que são apresentados como inegociáveis. Não basta alertar que as manifestações e ações são delituosas, são contra a lei. No contexto atual, em que instituições de várias naturezas e propósitos não estão responsabilizando, nem examinando com cuidado, nem procurando punir o que é claramente punível por lei – o que às vezes é o único propósito para o qual existem –, enquanto casos claros de crimes e injúrias raciais cometidas por várias pessoas, algumas ocupantes de posições públicas de destaque e importância, uma instituição educacional e civilizatória, em sentido amplo, como é a universidade, tem que exigir e praticar um acordo positivo com os valores que anuncia ter. Ela tem que dizer e sobretudo agir de modo inequívoco e contundente para evidenciar que quem não tem lugar no espaço universitário e numa sociedade civilizada são brancos racistas que eventualmente, por exemplo, até se nutrem e divulgam fabulações supremacistas conspiratórias de substituição de brancos por outras etnias. Para pessoas assim é absolutamente necessário que fique claro que existe uma condição para estarem nesse espaço: com essas atitudes e ações, sua presença na universidade está vetada. É de perguntar: e que outros crimes essas pessoas, por andarem dizendo e fazendo coisas desse tipo em nosso meio, começarão a cometer daqui a pouco? Dar tiros naqueles que eles querem eliminar de um lugar que começou a ter a presença das brasileiras e brasileiros de cor negra? Explodir banheiros? Plantar bombas? Formar milícias para em grupos, covardemente, atacarem pessoas indefesas à noite, em paradas de ônibus? Matar uns 30 mil? A pergunta cabe porque sabemos muito bem que ações de ódio são sempre precedidas por manifestações de ódio. Ora, são pessoas dispostas a isso que precisam mudar e entender que nossa sociedade é, e foi, desde muito tempo, composta por brasileiras e brasileiros de várias cores e convicções, e que é também por isso que variedade e pluralidade e respeito às pessoas devem ser positivamente observados, alimentados, por uma instituição cuja natureza é manter, incrementar e difundir o conhecimento do que há de melhor inclusive sobre como seres humanos podem viver conjuntamente em sociedade. A universidade tem o dever de deixar muito claro em notas, mas sobretudo em ações concretas, o que é se conformar positivamente aos valores que a constituem como instituição moderna de uma sociedade que a tem para alcançar os mais altos propósitos da humanidade. Então, é de se esperar que ela não somente alerte negativamente para que ações e manifestações racistas hediondas não aconteçam no seu seio, inclusive porque podem e devem receber punições severas pela lei, mas que ela também mostre positivamente o que é respeitar e fomentar o que a constitui como instituição na nossa sociedade, assim ela estará de fato aí para todas e todos que quiserem e puderem participar de tudo o que ela oferece de bom como sua missão: educação, formação, cultura, conhecimento e artes. Mas isso só será possível se pudermos viver em paz e segurança nesse ambiente com os nossos semelhantes, seres humanos que simplesmente como tais exigem respeito, em especial de brancas e brancos.
Racismo em campo no Beira-Rio
Poderia dizer, em tom paternalista, que o Edenílson foi corajoso. Mas o que sei eu da coragem do Edenílson pra essas coisas? A coragem em campo como jogador, isso ele já provou muitas vezes, mas não é disso somente que se trata.
Portanto, quero enaltecer a resposta ao que aconteceu no Beira-Rio esse final de semana. E, claro, o Edenílson foi uma parte que desempenhou um papel fundamental, essencial, para o que diz respeito a todos nós, friso, todos nós, brancos também: combater o preconceito e a vilania, aquilo que é crime e injúria racial. Que bom será se jogadores, torcedores e dirigentes, mas também dignatários de poderes da nossa república, e outros tantos brancos, não mais chamarem pessoas negras de macacos, ou de quaisquer outros termos dessa natureza.
Mas, como não acompanhei o ocorrido de perto, fiquei pensando se é possível que alguém não saiba que é racista ou que o que faz é cometer um crime de racismo ou uma injúria racial, os quais estão equiparados no nosso ordenamento jurídico. Me interessei por examinar a seguinte possibilidade, em função do que alegou, suspeito que cinicamente, o jogador do Corinthians (para ver como o racismo pode vicejar em todos os lugares). Ele declarou que, em função da educação que recebeu, etc., etc., não era, não é, e nunca será racista. É possível que alguém seja racista e não saiba que é? Ou não saiba que uma determinada ação sua seja racista? Como o assunto é sério, parto da convicção que o Edenílson não tenha inventado a ofensa (o que no fundo não faz diferença para a minha pergunta, basta para tal pensar que algo aconteceu mais ou menos desse jeito; um caso diferente seria uma ofensa metalinguística, quando, querendo claramente ofender, o sujeito diz algo como: “não sou louco de te chamar de macaco!”). Coisas demais estariam em jogo para o Edenílson se ele fizesse isso, além da sua reputação. Levar adiante o caso também, por certo, tem seu ônus.
Mas, tomemos como certo que o jogador do Corinthians o chamou, durante o jogo, de macaco. O que está fora de questão é que ele quis ofender o adversário futebolístico. Mas suponhamos que ele não tenha querido cometer, digamos, exatamente uma injúria racial. É plausível que o corintiano tenha podido querer ofender, sem ser de modo racial, o adversário, que é um jogador negro, chamando–o de macaco?
Para responder a essa pergunta, me parece, basta perguntar uma outra coisa: ele chamaria um jogador branco do Inter, o Cuesta talvez, de “macaco” para ofender de alguma maneira, qualquer que seja? Mas por que não? Ora, porque ele sabe que chamar de “macaco” um negro é especialmente ofensivo para jogadores negros e não para jogadores brancos, neste contexto.
Quis fazer exatamente essa pergunta a um juiz aposentado, conhecido meu, mas ele me cortou no ato, dizendo que, no mais das vezes, os racistas sabem que são racistas e quando estão dando vazão ao seu racismo. Ele me disse de pronto que tinha visto as imagens da cena, e que ficou convencido de que a ofensa racista foi proferida pelo corintiano (mas poderia ele manipulá-la para obter como efeito meramente uma ofensa, não racista?).
Quis saber de outro conhecido, o zelador de um prédio vizinho ao meu, um sr. que é negro, se ele achava que tinha acontecido uma manifestação de racismo em campo no Beira-Rio, contra o Edenílson pelo jogador do Corinthians paulista. Interessante o que ouvi, e apreciá-lo requer cuidado, à la Sydney Chalhoub (cf. Visões da Liberdade, analisando uma crônica do Machado de Assis, escrita em maio de 1888, sobre a alforria do jovem Pancrácio).
Me disse o zelador que não é fácil saber o que de fato aconteceu (em que sentido? O que foi dito? O que foi feito?). Quando então resolvi pedir que se colocasse na posição de um juiz que teria que julgar a ação do corintiano num processo devidamente instruído, em que constasse nos autos que o jogador do Internacional foi chamado de macaco pelo seu colega de profissão, o que ele decidiria, que houve racismo ou não? Ao que ele me respondeu, que, como colorado, seria fácil ficar do lado do Edenílson e dizer que o outro estava errado. Aqui o cuidado: o Sr. Zelador não está dizendo que não sabe o que é racismo, nem que não sabe ver quando
acontece ou que não quer se meter nesses assuntos. Assim, seria, desta vez também, paternalista, dizer que ele não quer ou não sabe se colocar na posição de um juiz que tem que aplicar a lei num caso posto à sua frente para o seu juízo. Ele me pareceu, no entanto, querer desconversar, o tema não lhe parecia confortável. Compreensível.
Voltando à minha pergunta. Me parece possível que um racista saiba que está ofendendo com uma forma racista de ofensa, mas acreditando que não será nesse ato tomado como racista somente porque não deseja ser pego no ato como alguém que está sendo racista. É de um pensamento mágico: não importa como tomem minha ação, eu não quis que fosse assim como a tomam, mesmo que as palavras, a intenção de ofender, a ocasião, tudo indique que se trata de um ato de racismo. O jogador, simplesmente, declarou que teve boa educação e que não é, não era e nunca será racista. Mesmo que realize atos racistas percebidos e tidos como racistas? Será possível que alguém aja nessas circunstâncias somente com culpa e não com dolo, que não tenha tido exatamente a intenção de ofender de modo racista, mas querendo ofender, a um jogador negro chamando-o justamente de macaco? Intenções especiais contam num caso assim? E se, com todas as condições preenchidas no caso, um padre no ato autorizado e consagrado da absolvição dos pecados disser para si mesmo, em foro interno, somente para si na sua consciência, que não está absolvendo o pecador de forma alguma, então não houve perdão dos pecados? No caso do racismo a situação é pior e menos escolástica: o contexto e as partes, todas, estão determinando o que está sendo realizado com as palavras proferidas. Não adianta procurar direcionar a intenção ou entreter uma intenção “especial”. Devemos, como pessoas dignas e responsáveis em interações sociais e morais com outros, saber e assumir o que o proferimento das nossas palavras (sem falar do tom, dos gestos, do comportamento) significam objetivamente num contexto, como serão tomadas por todos tipicamente nas suas circunstâncias efetivas (não foi como um ato reflexo). Me parece infantil e/ou cínico dizer depois do feito que não se teve a intenção, mesmo usando as palavras ofensivas racistas, e simplesmente pedir compungido desculpas quando o efeito do ato linguístico foi obtido e suas consequências morais e legais estão alcançando aquele que ofende. Não é brincadeirinha ofender pessoas negras chamando-as de macaco. Os brancos deviam saber disso. Onde estiveram até agora, vivendo onde e com quem, e o que estavam fazendo quando dizem que não sabiam? Será mesmo que não sabem quando, “candidamente”, querem fazer alguém (às vezes, alguém em particular) crer que não sabiam?
(*) Pai da Beatriz, aluna da turma 41, e do Pedro, ex-aluno da escola. Professor da UFRGS.