Cristine Zancani (2)
Quem é professor/professora está sempre refletindo sobre educação. Não só a partir de suas próprias vivências, mas também por conta do que acontece ao seu redor. Comigo não é diferente. Além de refletir sobre meu trabalho, ter uma filha em idade escolar sempre me ofereceu muita matéria de reflexão. Neste momento, as questões de reflexão se aprofundaram, pois tem a pandemia como pano de fundo. A pandemia e seus impactos na casa, nas escolas, em cada um de nós.
Como quase todas as casas, a nossa cresceu e diminuiu nesse período. Cresceu para abrigar inúmeros espaços: o local de trabalho de cada um, a escola, a praça… Diminuiu pelo mesmo motivo que cresceu, afinal, como estabelecer fronteiras para inventar tantos espaços em um espaço único? Por aqui, esses limites geográficos foram aos poucos sendo desenhados – conciliando tempos e demandas diversas.
Foi abrigando a escola dentro de casa, que tive a chance de acompanhar de outro ângulo a vida escolar da minha filha. Além disso, tive a chance de ver a escola se reinventando para dar conta de conteúdos e matérias à distância, mas também para criar formas de lidar com o impacto da pandemia nas crianças – que foi aparecendo ao longo do tempo/das aulas.
Cabe salientar que descrevo uma experiência observada em uma escola particular pequena (que vai do primeiro até o quinto ano do ensino fundamental). Falo, portanto, de uma situação muito privilegiada, onde escola e alunos tinham recursos tecnológicos para seguir em frente através de aulas síncronas. O que, infelizmente, não foi impossível para muitos estudantes da rede pública. Falo de experiências ocorridas no ano passado (2020), quando minha filha cursava o quinto e último ano nessa escola. Falo no lugar de uma mãe, uma mãe formada em Letras e transformada pelo trabalho em projetos na área da formação de leitores e de mediadores de leitura. Uma mãe que, atravessada por essa experiência profissional, acompanhou o trabalho da escola da filha com a leitura literária, nesse momento em que tudo no nosso modo de vida foi desorganizado e precisou ser recomposto. Uma mãe que viu a leitura literária ser uma peça fundamental para a reconstrução.
Li em alguns dos muitos artigos/reportagens/textos que nos chegam e a gente esquece a fonte, mas não esquece a informação, que a gente vai conhecer no futuro o tamanho real do impacto da pandemia nas crianças. Sim, o futuro vai nos mostrar mais claramente essas marcas, porque vamos olhar com distância e de forma coletiva, mas todos que convivem com crianças e também com adolescentes – seja em casa, seja nas aulas virtuais – já perceberam sinais desse impacto.
Crianças e adolescentes têm vivido de modo (quase) incompatível com o que a infância e a adolescência precisa: brincadeiras coletivas, liberdade, espaço, movimento do corpo, experiências variadas de socialização. Quem tinha uma vida intensa fora de casa – escola, atividades extraclasse, encontro com amigos, festas de aniversário – de repente se viu em um único espaço onde a tela teve que dar conta das aulas e dos encontros. Por mais que quebre um galho imenso (já pensou em tempos sem conectividade como passaríamos por isso?), uma festa de aniversário virtual não chega perto de uma festa real e a escola faz falta no que oferecia além da aula: o espaço físico com todos os locais queridos que ficaram inacessíveis: pátio, biblioteca, sala de arte. Locais que proporcionavam encontros e trocas muito especificas. Tudo isso somado ao fato das crianças saberem que o que as prende em casa é uma pandemia e viverem todas as preocupações que isso traz, em graus variados nessa vivência. Em todas as escolas, nesta altura, já há crianças que tiveram parentes infectados ou até mesmo já viveram alguma morte na família.
A escola da minha filha foi sensível em não perder nunca de vista que as aulas estavam acontecendo dentro de um contexto de pandemia. Se preocupou em adaptar o tempo das aulas – levando em conta que uma aula virtual é mais cansativa, visto que exige outro grau de atenção/concentração, que passa por ficar com o olhar fixo em uma única direção –, por exemplo; mas também se preocupou em oferecer espaços durante os encontros para que as crianças refletissem sobre o momento e falassem sobre seus sentimentos. Esses espaços aconteceram nas aulas de teatro, de música, de arte e nos momentos de leitura literária – onde vou concentrar minha atenção. Antes de falar sobre o impacto desses momentos, a mãe que observou as aulas da filha sai temporariamente de cena, para que a professora que atuou em projetos de formação de leitores compartilhe algumas informações sobre mediação de leitura.
Mediadores de leitura são pessoas que se colocam entre o livro e o leitor para unir essas duas pontas do processo de leitura. Mediadores de leitura trabalham para a formação de leitores. Nem todo professor/professora atua em sala de aula como um mediador de leitura, isto é, com intencionalidade para conquistar novos leitores – mas devemos (re)pensar nosso papel em sala de aula quando ele envolve a leitura. Será que a leitura precisa aparecer sempre a serviço de algum conteúdo? Será que não é possível abrir espaços de leitura compartilhada dentro das aulas? Abrir espaços de encontros com o texto que possam gerar conversas e transformações pessoais e coletivas? Abrir espaços que possam ensinar alunos a dominar a atitude exigida pela leitura literária: buscar informações ocultas na entrelinha?
Quem aprende a ler a entrelinha dos livros, vai levar essa atitude para a vida: vai se ler, ler as pessoas de sua relação, ler as notícias, ler os filmes, ler a natureza, ler o mundo em profundidade. Formar um leitor é formar alguém que vai procurar a entrelinha de tudo. Já pensou como o mundo aumenta com essa atitude? Já pensou ser quem possibilita a alguém o encontro com esse mundo aumentado?
Ao longo da pandemia, a escola da minha filha trabalhou os momentos de leitura como momentos de aumento do mundo. Se estamos limitados por paredes, nossa imaginação pode (e deve) nos fazer viajar, nos colocar em contato com diferentes paisagens, com diferentes pessoas, com situações alegres e tristes – para que possamos dar vazão para nossa alegria e para nossa tristeza.
As leituras na escola se dividiam entre leituras individuais e leituras compartilhadas. As individuais, como o nome sugere, eram feitas pelas crianças, em casa, com data agendada para o término; as compartilhadas, feitas na escola – ou seja nos encontros virtuais – pela professora. Essa escola tem como prioridade o trabalho com a leitura e com a escrita. Todo dia há um momento de leitura compartilhada. Poemas, contos e livros longos – lidos por capitulo. Na leitura de livros longos, a professora fecha o livro em um momento de grande suspense – como, em geral, são os finais de capitulo –, deixando a turma ansiosa pela continuação.
As leituras compartilhadas são um meio muito potente de formar leitores. Crianças que ouvem histórias lidas em voz alta por algum familiar ou cuidador associam a leitura a um momento de afeto. Os livros se tornam um lugar bom de estar, para onde elas vão voltar muitas vezes ao longo da vida, encantadas pela palavra. A questão é que em um país com índices altos de analfabetismo total ou funcional, cada vez menos as crianças vivem essa experiência em casa. Cabe ao professor/escola a responsabilidade de formar leitores. Para que isso aconteça, ele deve criar na escola esse clima afetivo de leitura, destinando espaços em aula para oferecer possibilidades de encontro com o livro.
Escrevo aqui sobre experiências de leitura compartilhada com crianças matriculadas no quinto ano do ensino fundamental, mas essa experiência pode ser repetida nas salas de aula de qualquer faixa etária. Nunca é cedo, nem tarde demais para começar a compartilhar leituras em aula. Pela minha vivência como mediadora de leitura, posso assegurar para vocês: todo mundo gosta de ouvir histórias. Quem acha que não gosta, ainda não sabe que gosta.
Tão importante quanto o momento da leitura é abrir um espaço de conversa sobre o que foi lido. O professor pode conduzir o momento, ressaltando aspectos que queira debater com a turma. Pode ir fazendo perguntas condutoras como: o que vocês acharam do comportamento da personagem X? Como vocês se sentiram diante da situação narrada na obra? Tem como relacionar o que aconteceu no texto com o momento que estamos vivendo? Desse modo, vi muitas vezes, a pandemia se tornar assunto entre a turma e vi a hora da conversa sobre a leitura se tornar um momento de elaboração individual e coletiva dos sentimentos vividos.
A importância de conduzir uma conversa onde o que foi lido dialogue com a subjetividade de cada um é imensa. Quando associamos o livro com nossas experiências, não aprendemos só sobre ele, mas sobre nós e sobre o mundo em que vivemos. Quando lemos, vamos dando significado ao que foi lido, acessando nossos sentimentos, nossas experiências, nossa visão de mundo. Em certos momentos, o livro nos coloca em lugares desconhecidos, em situações com as quais nunca nos deparamos, nos faz acompanhar outros pontos de vista. Assim, a leitura, amplia nossa vivência. A leitura nos oferece instrumentos para que a gente se insira no coletivo com mais respeito pelo outro e mais responsabilidade com ele. Não é exatamente isso que precisamos neste momento? Não é exatamente essa consciência da nossa responsabilidade com o outro que está nos fazendo falta?
No caderno da minha filha ficaram registros de impressões de leitura, onde ela elaborou os sentimentos da pandemia em frases como: “Muita coisa mudou: ando mais sensível, consumo menos e estou mais aberta pra falar o que eu sinto: trancada em casa, mas mais aberta por dentro” ou “A tristeza ensina coisas que a alegria não ensina” e “não estamos longe, estamos juntos de outra maneira”. Esse caderno tem o registro de uma época de pandemia pelo olhar de uma criança. Está guardado na estante de livros. O que faz todo o sentido: pois foram os livros que alimentaram esse olhar.
Que nesse momento de privação de liberdade, os livros sigam alimentando olhares. Que a leitura compartilhada em aula seja um espaço de ampliar o horizonte. Que seja uma chave para que crianças e adolescentes acessem seu interior e elaborem as dores deste momento. Mas também que seja uma forma de oferecer modos de manutenção da esperança e da alegria. Esperança e alegria que necessitamos manter acesas não só para sonhar o futuro, mas também para seguir reconstruindo o presente. Que a leitura seja uma ponte capaz de nos lembrar que não estamos longe uns dos outros: estamos juntos de outra maneira.
(1) Texto escrito no início de 2021 e publicado na Revista do Professor – A voz do Educador, Edição de Maio/Junho de 2021.
(2) Mãe da ex-aluna Clara (5º ano/2020) e doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS.