Ianes Gil Coelho (*)

No 3º trimestre de 2024, o estudo de música na Escola Projeto se dedicou ao universo do samba a partir do encontro com a musicista, compositora, atriz e arte-educadora Pâmela Amaro.
Para a produção do presente texto, refleti sobre etapas que criam um alicerce importante para o acontecimento desse projeto: encontros prévios com a artista; mergulho na escuta das músicas e contato com sua produção; identificação de temáticas recorrentes presentes no repertório; trocas com a equipe docente e coordenação; preparação do projeto como um todo a partir de um processo cuidadoso de curadoria. Estive atento às sensações e atravessamentos que a vida docente evocava ao longo desse estudo, assim como também busquei ativamente (re)visitar leituras que conversassem com a ideia de arte, educação e escrita. E como quem tece palavras para tentar registrar a riqueza das experiências que acontecem na escola a partir desses encontros, escrevo este registro.
Os projetos da escola que estudam artistas de diferentes áreas, respectivamente no campo da literatura, artes visuais e música, estabelecem, de alguma forma, conexão com a ideia de palavra, imagem e som. Palavra é a substância primordial que permite criar uma narrativa literária, contar histórias. Imagem, de maneira mais palpável e concreta, se expressa na produção visual, seja num desenho, pintura ou em outras variadas possibilidades. E som é a matéria-prima invisível através da qual a música é criada. As palavras associadas a essas artes evocam verbos: ler e escrever, olhar e observar, escutar e ouvir. Palavra tem som, e o som, quando comunicado, cria imagens e significados. Tudo isso conversa entre si e acontece de maneira não linear, ao se desdobrar de maneira contínua na vivência escolar e construção de vivências, saberes, conhecimentos e memórias.
Manoel de Barros diz: “Acho que a palavra tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. Evoco tal citação para propor o texto a partir da ideia de palavra em duas frentes. A palavra poética de Pâmela Amaro, sua produção musical e seus significados. E a palavra brincante como recurso pedagógico possível e necessário para uma aula de música rica e envolvente.
A palavra poética de Pâmela Amaro

A canção Casa de Versos, de Pâmela Amaro traz consigo forte caráter autobiográfico.
“A minha casa é de samba e teatro, construí em cada ato que ensaiei antes de entrar em cena. Pequena, não é feita de madeira, e sim dos versos de João Nogueira que cantei de bar em bar. O travesseiro macio que eu durmo é desse suor noturno cantando um bom refrão de Yvone Lara. Cheguei devagarinho, pisei miudinho, dei a cara pra bater. O meu colchão comprei com o dinheiro da moçada que pagou pra ver”.
Além de trazer referências musicais do mundo do samba como João nogueira, Yvone Lara e Marçal, há uma menção significativa ao valor da leitura: “Dos livros que eu li, dos discos que ouvi, guardei feito um tesouro enterrado no quintal. Os versos de Marçal e o teco do tamborim. Guardei, isso ninguém tira de mim”.
Se a canção Casa de Versos faz alusão à época em que a cantora morava com outros artistas na rua Fernando Machado, no centro histórico da cidade, cantando de bar em bar, na noite porto-alegrense, a música Antes de Nós, também com característica autobiográfica, traz memórias de sua família e como o aprendizado da música e do samba se desdobrou de geração em geração.
“Papai que aprendeu com vovô que ensinou ao irmão um bom samba-canção. E eu deixo aos meus filhos e netos o que há de concreto no meu coração… E no canto de Dona Amabília sentia que o samba corria de um jeito que me encantava. E hoje que sou neta e filha faço poesia dos nossos quintais. Cantando esse samba-memória que hoje leva histórias que não se contam mais”.
A composição é marcada pela conversa com solos de trombone e registros da voz feminina de uma mulher mais velha, sua tia, que relembra momentos familiares e festivos de outros tempos. A mensagem traz consigo a ideia da importância em conhecer a própria história, conectar-se com sua identidade e honrar quem veio antes.
Nesse sentido, o trabalho com temáticas étnico-raciais vai ao encontro de um movimento amplo que a escola vem tendo nos últimos anos de incorporar ao currículo conteúdos desse universo, de modo a valorizar as raízes indígenas, negras e africanas que compõem os alicerces da cultura e identidade brasileira. A exemplo disso, o currículo de música vem se reinventando com novos projetos e repertórios, dentre eles destaco o estudo da música negra – dentro e fora do Brasil – no contexto da diáspora africana, a ancestralidade do tambor e sua presença em diferentes culturas e manifestações musicais; e o estudo de gêneros como samba, reggae e rap, trabalhados em diferentes vertentes estéticas e composicionais.
“Os obscurantistas querem desapropriar a luminosidade da raça negra. Iniciar a criança nos modos e maneiras de conhecer-se e conhecer seus pais e suas origens é um processo fundamental. Combater o racismo com a racialidade. O racismo é um jogo de antagonismo entre as raças, racialidade é o reconhecimento de cada raça naquilo que ela significa e no que pode ter contribuído para as outras. Reconhecer a pele negra, o cabelo encaracolado, valorizar essas coisas. A raça como espelho, como autoconhecimento, se olhar no espelho e se ver inteiro, ver quem você é”. (Gilberto Gil)
Pâmela Amaro se destaca por ser, além de musicista e cantora, também uma mulher instrumentista e compositora. É comum, ao acessarmos um imaginário da música brasileira, observarmos cantoras notórias como Elis Regina, Gal Costa, Elza Soares e encontrarmos nelas a característica predominante de serem intérpretes. Incomum era o fato de mulheres ocuparem o lugar da criação, tanto que letras com o eu-lírico feminino, como Esse Cara e Tatuagem, são exemplos de composições feitas por homens – Caetano Veloso e Chico Buarque, respectivamente – e endereçadas à demanda de intérpretes mulheres. Nesse sentido, penso em Joice como exemplo de mulher que quebrou tal paradigma e foi marcante por também atuar como compositora e instrumentista, trazendo o feminino em sua criação em músicas com Essa Mulher e Feminina.

Ao se colocar também como compositora, Pâmela assume protagonismo, propondo grande variedade temática na poética de suas canções: a religiosidade e as orixás africanas em Pedido a Osun; as relações parentais e familiares em Colo de Mãe; o protagonismo feminino e da mulher negra em Deixa Que Eu Vou te Contar – assim como na participação de mulheres negras nas gravações do álbum Samba às Avessas; o samba como evento social marcado por momentos festivos e familiares em Vadeia e Samba Arte Popular; o amor em Negro Amar e Já Ganhou Meu Coração, a cultura tupi-guarani em Homenagem a Tupã, que também faz menção a seu avô; e a quebra de paradigmas de pontos de vista em relação aos papéis de gênero em Samba às Avessas.
A palavra brincante nas aulas de música

Pensar a aula de música tendo como ponto de partida um conteúdo pré-determinado traz consigo alguns desafios. Fato é que existe um objetivo final a ser alcançado, e isso envolve conhecer um repertório musical específico e situá-lo em um contexto amplo em termos de significados que vão além do objeto sonoro em si. Mas se o destino importa, a viagem, ou seja, o processo, o ‘como’ tudo isso acontece importa também, e importa muito.
No caso desse projeto, o samba e a obra de Pâmela surgiram como motes centrais a partir dos quais se ramificariam diferentes propostas para vivenciar, aprender e conhecer o repertório da artista e os simbolismos que o samba traz. É aí que a ideia de palavra brincante surge como alusão a uma proposta metodológica e pedagógica para as aulas de música. Quando palavra poética da autora se encontra com a palavra que gera movimento em sala de aula, o encontro do brincar com a poesia musical abre diferentes frentes: brincar a partir da palavra, brincar com a palavra, colocar a palavra em movimento, deslocá-la de seu lugar comum e permitir que novas entonações, abordagens e contextos tragam também a possibilidade de novos significados, construir conceitos subjetivos a respeito de si e do outro a partir dessas experiências que envolvem o brincar, o lúdico, o jogo, espaços de protagonismo, de fala e escuta, e também de vivências estéticas que despertam emoções.
Não basta apenas ouvir e repetir, sentar e cantar, fazer com que algo aconteça por mera imitação. Algo que se limite à ideia ‘professor transmite e criança recebe’ não é suficiente. Nesse sentido, colocar a palavra em movimento significa propor variadas formas de vivenciar a música durante as aulas. Dessa forma, a repetição, ainda que inevitavelmente aconteça, não é em si o ator principal da cena da aula. O ato de repetir garante a assimilação do conteúdo, mas é na variedade de estímulos que melodia, texto, poesia, ritmo e seus significados poéticos se incorporam de maneira significativa. É como revisitar um mesmo lugar de várias maneiras sem perceber que isso está acontecendo. E de repente a música já está no corpo e ganhando vida de maneira natural e fluida. Nesse processo, as crianças partem de estímulos oferecidos, mas também, a partir dessas referências, exploram, experimentam e criam novas possibilidades.
Trago aqui alguns dos caminhos explorados durante o projeto no trabalho com as diferentes canções de Pâmela.
A criação de coreografias para estrofes ou refrão de algumas músicas sempre contribui na assimilação das letras. A canção Pedido a Osun, por exemplo, trouxe versos sugestivos: “vou me banhar nas águas de uma cachoeira, Yeye graciosa mãe, Pandá guerreira, venha em minha defesa, Yalodê, dona da beleza”. Algumas palavras-chave surgem como ponto de partida: cachoeira, guerreira, defesa e beleza. E as crianças expressam corporalmente um banho de cachoeira, lançam uma flecha fazendo alusão à guerreira, ensaiam um gesto de defesa a algum colega e, por fim, fazem uma pose que expresse sua beleza singular. Fico impressionado em como propostas dessa natureza permitem que as crianças se apropriem da melodia marcante de um refrão de maneira tão efetiva e envolvente. Cantamos a capela, ouvindo a gravação, fizemos gestos sem cantar, tocamos tambores, tudo isso até chegarmos à vivência da música com a riqueza do preenchimento harmônico do violão e mais focada em pormenores melódicos e rítmicos e objetivos musicais mais específicos.
Nas primeiras séries do fundamental e na educação infantil, enquanto cantamos o refrão da canção Já Ganhou Meu Coração, um tamborim circula na roda entre as crianças e em eventuais momentos a música para nos versos que dizem “encontrei felicidade” ou “já ganhou meu coração”. Quem fica com o instrumento em mãos nesse momento de silêncio cria um ritmo e em seguida expressa ao grupo algo que lhe traz felicidade ou alguém que ganhou seu coração, a depender do verso.
Explorar palavras específicas de algumas canções de diferentes maneiras é também um caminho possível. Expressar a palavra falada, cantada, mais rápida ou mais devagar, sussurrada ou de forma dramática, evocando diferentes emoções. Realizar o registro gráfico dessas palavras e realizar combinações associativas entre elas formando frases diferentes ou ainda marcar palavras e inserir instrumentos junto ao canto nos momentos em que elas surgem ao longo do canto são outras abordagens possíveis.
A canção Vadeia abriu espaço para que as crianças dançassem em roda de maneira individual ou em duplas, se expressando corporalmente de maneira livre ou se aventurando nos passos do samba. Os alunos das séries mais avançadas do ensino fundamental também se organizaram em grupos e criaram arranjos com texturas instrumentais para acompanhar trechos de canções da autora que mais gostaram, apresentando tais produções aos colegas. Em outros momentos, instrumentos com características idiomáticas presentes no samba como tamborim, surdo, pandeiro e ganzás foram explorados com seus respectivos ritmos dentro do samba, criando assim uma sonoridade que fez algumas crianças comentarem: “parece que estamos tocando numa escola de samba no carnaval”. Ainda imitamos com a voz o som da cuíca e tocamos berimbau, gingando e dando rasteira no vento ao cantar os versos “o destino jogou capoeira, deu rasteira no meu penar”, de Negro Amar.
Acredito que algo misterioso que certas vezes acontece na aula de música seja resultado de uma combinação muito singular entre a palavra poética de um artista e a palavra brincante que se movimenta na maneira de vivenciar essa arte em sala de aula. É como uma alquimia sutil não passível de mensuração. Mas fato é que, quando essa sinergia se concretiza, algo de especial acontece e não há registro que dê conta de capturar. E é aí que surge, por fim, uma terceira dimensão da palavra que tem relação com sua própria limitação em expressar o que não cabe nela mesma: uma atmosfera de encantamento que somente a vivência da aula de música é capaz de proporcionar.
(*) Professor de Música da Escola Projeto, flautista, violonista e compositor.
Saiba mais sobre esse trabalho em:
https://www.escolaprojeto.g12.br/t32-deixa-que-eu-vou-te-contar/
https://www.escolaprojeto.g12.br/show-de-pamela-amaro/