Qual a importância do brinquedo na vida da criança?
“A criança desenvolve-se, essencialmente, através da atividade de brinquedo”
(Vigotsky, A Formação Social da Mente, Cap. 7: O papel do brinquedo no desenvolvimento, Ed. Artmed)
O brinquedo não é só uma atividade prazerosa, nem sequer a atividade predominante na vida da criança, mas é uma atividade essencial para o seu desenvolvimento, porque ele preenche necessidades da criança, ou seja, ele é o motivo para sua ação, que é o que a faz avançar, mudando motivações, tendências e incentivos.
É no brinquedo, ou pelo brinquedo, que a criança constrói a imaginação, o pensamento imaginário (que não está presente em crianças muito pequenas), segundo Vigotsky. Diz ele: “o velho adágio de que o brincar da criança é imaginação em ação deve ser invertido; podemos dizer que a imaginação, nos adolescentes e nas crianças em idade pré-escolar, é o brinquedo sem ação.”
Por outro lado, o brinquedo é a expressão do desenvolvimento infantil, ou seja, através do brinquedo da criança podemos ter acesso à forma como ela está se desenvolvendo. Observando atentamente a forma como a criança brinca, com quê ela brinca, poderemos saber o que está pensando, sentindo, que relações está estabelecendo… Assim, o brinquedo é como um instrumento de conhecimento da criança e também de trabalho (na escola) ou tratamento (em terapias, por ex.).
“Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele mesmo, fonte de desenvolvimento.” (Vigotsky)
Os brinquedos têm de ser variados ou diferenciados, contemplando os diferentes aspectos do seu desenvolvimento: corporal, social, intelectual e emocional. Não só um ou outro. Quer dizer, não se deve oportunizar apenas brinquedos que estimulem o intelecto (quebra-cabeças, charadas, memória, dominó, jogos com nºs, cores, letras, p.ex.) ou o corpo (bola, corda, corridas, balanço, escorrega, patinete, bicicleta etc.). É preciso que a criança tenha a vivência dos diferentes tipos de brinquedos para se desenvolver integralmente.
Brinquedo também é cultura, tanto no sentido de que reflete uma cultura (podemos conhecer outras culturas através de seus brinquedos; brinquedos de uma determinada época ou região), como no sentido de que o brinquedo não está restrito ao objeto físico/material que a criança usa para brincar. Também são brinquedos a música, a pintura, a dança, a própria linguagem, o corpo.
Precisamos diferenciar entre o brinquedo-objeto e o brinquedo como ato da criança, o ato de brincar, para não ficarmos limitados ao brinquedo-objeto e presos a uma necessidade de encher a criança de brinquedos como condição para ela se desenvolver bem; se ampliarmos a visão, seremos capazes de entender que tudo pode virar brinquedo e que o mais importante não é o objeto em si, nem tampouco a quantidade de brinquedos que a criança tem, mas sim a relação (qualidade e diversidade) que a criança estabelece com o objeto, o que também depende da intervenção do adulto.
Então: é fundamental a presença do adulto no brinquedo da criança, assim como é fundamental na sua aprendizagem. Ela até pode brincar sozinha, como pode aprender algumas coisas sozinha, e muitas crianças assim o fazem; mas se o adulto estiver por perto para lhe incentivar, instigar, questionar, sugerir, informar, apoiar, orientar, lhe dar os limites necessários, isso lhe permitirá um brinquedo muito mais produtivo e prazeroso, no sentido das possibilidades de aprendizagem, da evolução do próprio brincar e até da resolução de conflitos (próprios e com o outro), o que, por sua vez, se refletirá num desenvolvimento mais pleno, em diferentes aspectos.
O brinquedo para a criança é como o trabalho para o adulto, em termos de gratificação e prazer, de envolvimento, de comprometimento, de necessidade. É o modo da criança se relacionar com o mundo e com os outros.
O brinquedo também deve ser uma forma de acesso ao meio-ambiente para a criança. Brincar na praça, no parque, no mar, na lagoa, na chuva, nas dunas, na areia, com água, com o barro, subindo e descendo morros/barrancos, rolando e pisando na grama ou na terra são experiências fundamentais que permitem à criança ampliar seus conhecimentos do mundo e sua forma de se relacionar com ele.
Existe um brinquedo certo para cada faixa etária?
Não! O que existe é uma necessidade de combinarmos esse dado de faixa etária com o nível de desenvolvimento da criança, para, então, decidirmos o brinquedo mais adequado para ela. É preciso conhecer a criança, pois uma mesma indicação do fabricante (ex: 2 a 3 anos) pode servir para crianças menores (1ano) ou maiores (4 anos), conforme sua experiência anterior ou seu temperamento.
Assim como um livro não pode, de antemão, ser rotulado para uma idade específica (ex: um livro por ter pouca ilustração ou mais texto não significa necessariamente que ele não sirva para uma criança menor), também o brinquedo, para servir ou não para uma determinada idade, depende de como o adulto possa intervir, e isso também em relação a algum “risco” que o brinquedo possa representar (brinquedos muito pequenos ou martelos, p. ex., para crianças pequenas).
Todas as crianças brincam do mesmo modo? Existem diferentes etapas no brincar?
Existem, sim, algumas diferenças, conforme a etapa e as experiências anteriores da criança, tendo em vista as possibilidades do brincar (como no aprender). Por exemplo, as crianças bem pequenas, de até 3 anos, mais ou menos (período que chamamos de 1ª infância), dificilmente se envolvem numa situação imaginária, pois seu comportamento ainda é determinado, de maneira considerável (e o do bebê de maneira absoluta), pelas condições em que a atividade ocorre. Chamamos isso de “restrição situacional”, em que os objetos ditam à criança o que ela tem que fazer. Por exemplo, uma porta solicita que a abram e fechem, uma escada, que a subam, uma campainha, que a toquem. Isso porque há nessa fase uma união de motivações e percepção, ou seja, a percepção não é um aspecto independente, mas está integrada a uma reação motora. Assim, toda percepção, nessa fase, é um estímulo à atividade. Além disso, a criança não consegue separar o campo da percepção do campo do significado.
Já na idade pré-escolar (3 a 6, 7 anos), no entanto, a criança começa a ter condições de agir independentemente daquilo que ela vê, ou seja, os objetos perdem sua força determinadora. Nessa etapa, ocorre, pela primeira vez, uma divergência entre os campos do significado e da visão, ou seja, é possível que o pensamento esteja separado dos objetos e que a ação surja das ideias e não das coisas. É, então, que um pedaço de madeira pode tornar-se um boneco e um cabo de vassoura pode tornar-se um cavalo.
Aqui, também se observa o início do brincar com regras. Mesmo numa situação imaginária já há regras de comportamento, embora possa não ser ainda um jogo com regras formais estabelecidas a priori (ex: brinquedo de mãe e filha, brincar de irmãs – preocupação em exibir o comportamento que concebem como sendo o de irmãs, ou de mãe, ou de filha). É interessante observar que, segundo assinala Vigotsky, “o que na vida real passa despercebido pela criança torna-se uma regra de comportamento no brinquedo”.
Assim, vê-se que é no brinquedo que a criança aprende a agir numa esfera cognitiva, ao invés de numa esfera visual externa, dependendo das motivações e tendências internas, e não dos incentivos fornecidos pelos objetos externos.
Existe um brinquedo certo para o menino e outro para a menina?
Não necessariamente. Acreditamos que é preciso oportunizar experiências variadas para as crianças independente do sexo, justamente para que elas vão estabelecendo as diferenças e podendo optar pelo que gostam mais. As meninas podem, e devem, brincar de carrinho, assim como os meninos também podem, e devem, brincar de boneca. Até porque, hoje em dia, os homens lidam com bebês e filhos maiores, trocando-os, fazendo-os dormir, brincando com eles, e as mulheres dirigem, trocam pneus e lidam com carros de diferentes formas.
Ou seja, acreditamos que não será impedindo a criança de brincar com determinado tipo de brinquedo que estaremos assegurando sua masculinidade ou sua feminilidade. Até porque, o impedimento, ou a proibição, só aguçará ainda mais a curiosidade da criança, que naturalmente quer conhecer e experimentar, e ela acabará encontrando um modo de brincar “escondido”, o que não permitirá a intervenção do adulto.
O adulto pode intervir no brinquedo da criança? Como?
Pensamos que pode e deve!!! Um pai e uma mãe que brincam com o filho, conhecem mais esse filho, ou melhor, aprendem a conhecê-lo e a se relacionar com ele. Portanto, ficam mais próximos afetivamente e a comunicação flui de forma mais natural e espontânea. É importante os pais se sentirem bem e brincarem de forma espontânea com a criança. Não é preciso “saber” brincar. Isso não existe. Isso é mais um engodo ou um equívoco, gerado por interpretações apressadas da psicologia, que deixa os pais inseguros e estimula a solidão, da criança e dos próprios pais (o mal do século). É preciso apenas que os pais QUEIRAM brincar e se aproximar do seu filho, o resto vem naturalmente, com o próprio brincar; uma ação vai levando à outra e o pai ou a mãe, à medida que vão “entrando” na brincadeira, vão “se soltando” e o mais provável é que se entusiasmem e curtam muito essa atividade. Até porque estarão entrando num tipo de sintonia com a criança que lhes dará muito prazer, mesmo que lhes dê algum cansaço físico.
O adulto não deve se abster de sugerir, de também propor rumos para a brincadeira, de entrar na fantasia. Isso faz com que sua participação seja sentida pela criança como uma participação mais autêntica e que haja realmente um intercâmbio.
Mas, atenção, brincar com a criança não deve ser feito somente como uma obrigação!!! Até porque, se assim for, esse movimento de aproximação resultará ineficaz, porque a criança percebe. O importante é o contato com a criança, não obrigatoriamente brincar com ela (Tania Zagury, Educar sem culpa – a gênese da ética, Ed. Record, 99). Devemos brincar sim, sempre que tivermos vontade, desejo disso. Quando não, existem outras formas bastante satisfatórias para os dois lados. Ficar ao lado, chamar a criança para brincar perto, enquanto o pai ou a mãe fazem alguma outra coisa pode ser muito mais produtivo afetivamente do que brincar de casinha tentando disfarçar a impaciência, pois mostrará que a companhia dela é desejada, “curtida” pelos pais. Além disso, ter medo, ficar inseguro ou culpado por não ficar o dia inteiro à disposição da criança são ingredientes que deixam um pai ou uma mãe prontos para se tornarem “escravos” das vontades dos filhos. É claro que há determinados obrigações para os adultos, perante seus filhos, mas não se trata de ceder à sua tirania:
“Estar junto sim. Brincar como uma criança, só quando estiver com vontade.”
(Tania Zagury)
Pode-se dar armas de brinquedos para as crianças?
Assim como na questão do gênero, em que defendemos que não é o fato do menino brincar com um batom que o fará ser um homossexual no futuro, também aqui neste aspecto acreditamos que não é o fato de a criança brincar com uma arma de brinquedo que a fará ser violenta, ou não é deixando de brincar com uma arminha que garantiremos que ela não seja violenta.
A violência está na nossa sociedade e é claro que temos de pensar em formas de resolvê-la; mas não é escondendo-a que iremos conseguir isso. Até porque não conseguiríamos esconder por muito tempo: se a criança não tiver contato com esse tipo de brinquedo em casa, provavelmente o terá em algum aniversário, na pracinha, na escola ou na casa de um amigo. É claro que não somos a favor de encher a criança de armas nem de jogos violentos, apenas acreditamos que não devemos isolá-las numa redoma e que podemos fazer com que aprendam também com esse tipo de brinquedo. Até porque, ao brincar, a criança, elabora e busca entender o que vê e o que ouve, às vezes até o que vivencia (sobre esse e sobre outros assuntos); ela pode aprender muitas coisas sobre o assunto e sobre esses objetos, até outros tipos de conceitos e ideias (científicos, sobre o corpo humano, sobre física). Tudo dependerá do modo como os adultos estarão intervindo nessa brincadeira.
Então, de novo: o mais importante não é o objeto em si, mas a relação que a criança estabelece com ele, o que, por sua vez, dependerá muito da intervenção do adulto.
O mesmo vale para o computador, a TV e os vídeo games.
E sobre os brinquedos da moda, o que fazer?
Vale aqui, antes de mais nada, o bom senso e a busca de coerência, tentando preservar os valores em que se acredita. No nosso ponto de vista, seria importante tentar conciliar o critério de variedade da oferta para as crianças (no sentido delas poderem ter experiência com os diferentes tipos de brinquedo) com a necessidade do limite, o que nem sempre é fácil ou simples. No entanto, se a família tem clareza sobre o apelo comercial desse tipo de brinquedo e se tem entre seus objetivos ensinar à criança critérios de seleção para o consumo, para que ela não seja um consumidor desenfreado e “babaca”, mas alguém que, com inteligência faz opções, isso já é meio caminho andado. Essa família vai conseguir fazer limites razoáveis, sem alienar seu filho.
No caso da Barbie (brinquedo da moda em determinada época), em especial, uma questão que podemos refletir é que ela representa um determinado padrão de beleza de nossa sociedade, ao qual muito poucas pessoas correspondem e em relação ao qual há até aspectos de doença associados (ex: anorexia). Se adotamos o critério da diversidade, não podemos ser contra a Barbie, mas, com certeza, nos preocuparemos em não oferecer somente a Barbie. Bonecos e bonecas representando diferentes etnias e padrões (negros, chineses, bonecos de pano, bebês, bonecos homens e bonecas mulheres, magros e gordos etc) devem ser oferecidos.
Isso mostra que é importante refletirmos sobre brinquedos ou quaisquer outros objetos ou situações que oportunizamos às crianças, sob pena de embarcarmos de forma ingênua em modismos que não irão favorecer ou enriquecer em nada sua formação.
Tipos de brinquedos recomendados
Para bebês: brincar com o corpo do bebê, com a voz, com o paninho ou a chupeta, se for o caso, com caixas de almofadas de vários tamanhos e texturas, com instrumentos musicais e outros sons (chocalhos, sinetas, apito, móbiles musicais, a música em si), com pulseiras e colares, com diferentes recipientes plásticos, com caixas ou brinquedos de puxar, figuras de animais, pessoas e objetos, objetos de rolar etc.
À medida em que a criança vai crescendo, ir ampliando os objetos e ações, assim como companheiros de brincadeira (colegas da escola, vizinhos, parentes):
- fantoches
- jogos de montar e desmontar, de encaixar e construir
- brinquedos de parque: balanço, escorregador, roda de girar, gangorra
- brincar com areia e água, com baldes, pás e diferentes recipientes, mangueira etc.
- livros de história
- brinquedos tipo cavalinho de pau, bambolê, canos de PVC, corda, bola, tacos e/ou bastões de madeira, lençóis e panos, pneus
- revistas e papéis
- massinha, giz, lixa, esponja, pincéis, aquarela, canetas
- telefona, relógio, lanterna
- sapatos, bolsas e roupas (baú de fantasias)
- brinquedo de casinha: bonecas, utensílios, móveis e eletrodomésticos de brinquedo
- brincadeira de esconder e de pegar
Até chegar aos jogos com regras:
- brincadeiras de rua
- jogos de tabuleiro, memória, dominó, com dados
Por que não se traz brinquedo de casa para a escola?
Para que as crianças aprendam a compartilhar experiências e objetivos, superando o egocentrismo característico da faixa etária. Além disso, a escola se organiza para oferecer às crianças brinquedos e jogos adequados à faixa etária, necessidades e interesses das diferentes turmas.
Se queremos que elas desenvolvam a socialização, as relações sociais e a autonomia, devemos apostar no potencial que têm as crianças para isso, oferecendo situações nas quais elas possam experimentar, dividir e compartilhar com tranquilidade.
Os objetos e brinquedos da própria criança oferecem um elemento a mais que dificulta e atrapalha a descentração de seu ponto de vista. Como pedir á criança que divida o que é seu? Isso seria exigir dela mais do que pode nesse momento do seu desenvolvimento.
Porém, através do dividir, compartilhar, emprestar objetos da escola, que são de todos, é possível vivenciar situações em que ela vai progressivamente vislumbrar os ganhos, as conquistas e as frustrações de maneira mais equilibrada.
Saiba (e reflita) mais sobre o tema:
Assista ao documentário de Estella Renner, “Criança, a Alma do Negócio”, que você pode acessar pelo link: