Como a Projeto concebe o trabalho com a ortografia?
Acreditamos que a escola deve formar leitores e escritores competentes e que, nessa perspectiva, o trabalho com a ortografia é necessário e importante para despertar no aluno uma postura de reflexão e curiosidade a respeito da escrita correta da língua materna e para oportunizar-lhe uma escrita gradativamente mais próxima à convencional.
Sabemos, no entanto, que esse processo de ortografização é diferente da alfabetização e exige um trabalho específico, o qual se estenderá, para a grande maioria dos alunos, para além das séries iniciais, tendo em vista sua complexidade. Assim, a partir do momento em que a criança está alfabetizada, no sentido de ter chegado ao domínio do sistema alfabético (escreve uma letra para cada som), como um escritor iniciante que é, tem ainda uma longa trajetória pela frente no que diz respeito à escrita ortográfica ou convencional.
Por isso mesmo é imprescindível que esse trabalho inicie em seguida à consolidação da alfabetização, quando os alunos revelam plenas condições de começar uma reflexão a respeito da diferença entre a língua falada e escrita, apropriando-se e utilizando-se de algumas regras básicas, que tornarão seu texto mais legível. O quanto antes se puder desenvolver esse trabalho, colocando-o em prática de forma sistematizada e periódica, tanto mais cedo o aluno poderá chegar a um maior domínio da escrita em seu aspecto formal, liberando-se para atender aos aspectos mais criativos.
“…um docente que conhece seu aluno e que sabe quais são as características do sistema ortográfico, deve intervir eficazmente para conseguir que, desde o momento mesmo da apropriação do código, as crianças construam as estratégias para chegar à escrita correta.” (Graciela H. Pérez de Lois, Cuando empezamos a trabajar la ortografía?, in Projeto – Revista de Educação, ano 1, nº 00, jan-jun/99, Ed. Projeto)
O professor, aqui como em outras aprendizagens, tem um papel fundamental, enquanto aquele que irá incitar constantemente a dúvida, estimulando a reflexão, mas também como aquele que se colocará disponível como fonte de informação e que orientará, auxiliando e instrumentalizando os alunos na busca de respostas. As situações de aprendizagem que ele puder planejar a partir das dificuldades mais comuns que observar na sua turma devem favorecer, num clima de investigação e curiosidade, a observação, a análise, a comparação, a formulação de perguntas e de regras, no caso das regularidades, e também a memorização, no caso das irregularidades.
Trabalhar com uma determinada questão, no entanto, não quer dizer que os alunos, a partir dali, não errarão mais. Ou, pelo menos, um determinado trabalho realizado não garantirá a escrita correta como um resultado imediato. Às vezes, até se verifica o contrário, ou seja, a partir do momento que se começa uma discussão sobre determinada forma de escrita, as crianças parecem errar mais do que antes; algumas até, que não erravam, passam a fazê-lo. É que quando se coloca os alunos a pensar, quando o clima é de construção, eles se arriscam, sentem-se à vontade para trazer suas próprias ideias. Além disso, ficam mais voltados para uma determinada questão para a qual talvez não tenham se voltado antes e passam a realizar, por algum tempo, o que se chama de “hipercorreção”, até atingirem um nível de domínio tal que possam apropriar-se da forma correta de escrever.
Como acontece também em outras áreas do conhecimento, segundo nos chama atenção a educadora argentina Delia Lerner, os conceitos não são construídos ou aprendidos de uma vez para sempre, sendo necessário termos claro que as aprendizagens se dão por progressivas e reiteradas oportunidades de ressignificação. Assim, uma determinada estratégia de trabalho atingirá alguns alunos em alguns aspectos, outros alunos em outros aspectos ou níveis, e, ainda outros, não serão atingidos de forma nenhuma, de acordo com o que seja possível para cada um no momento em que foi feito o trabalho, considerando-se aqui seus conhecimentos e habilidades anteriores, bem como sua atitude e postura em relação à atividade. Isso implica em que devemos organizar o trabalho de forma que o mesmo conteúdo (no caso, as mesmas ocorrências ortográficas) seja abordado em diferentes séries, com enfoques diversos, através de meios ou tipos variados de estratégias e em gradativos níveis de aproximação e de ajuda aos alunos, até que se apropriem dele e automatizem sua aprendizagem, sendo capazes de manifestá-la de forma mais independente.
Como a escola vê os erros dos alunos? Os professores fazem correções?
Durante muito tempo, antes das ideias construtivistas serem difundidas, os professores interpretaram o erro como algo perigoso, algo que não podia ser mostrado, visto, lembrado e registrado. O erro era uma marca de fracasso, que se relacionava a uma incapacidade exclusiva do aluno. Raramente o erro era atribuído a uma falha do ensino ou do professor. Portanto o erro era algo que não estava em questão na cabeça dos educadores, ele simplesmente deveria ser combatido através do ensino repetitivo, sistemático e baseado na transmissão de conceitos.
As concepções construtivistas de ensino-aprendizagem trouxeram a possibilidade de se reinterpretar o erro. Ele passa a ser visto, então, como parte integrante do processo de construção do conhecimento. Representa a trajetória ou o caminho pelo qual passa, necessariamente, aquele que aprende na busca de lógica e coerência entre as ideias com que está interagindo na construção de um estado de maior conhecimento. Assim, os erros que o aluno comete, em qualquer área do conhecimento, nada mais são do que tentativas na direção da aprendizagem.
Isso não quer dizer, no entanto, que a escola deve apenas assistir e aceitar os erros dos alunos. Nossa tarefa é oferecer-lhes possibilidades variadas de ação sobre os objetos de conhecimento, para que possam, sim, experimentar e construir suas ideias. Mas, além disso, temos de realizar intervenções didáticas que os desafiem adequadamente na busca de respostas cada vez mais elaboradas. Isso inclui, além de questionar e problematizar, informar os alunos, transmitindo-lhes algumas convenções e instrumentalizando-os para buscarem de forma cada vez mais autônoma as informações necessárias, as quais, a cada etapa, lhe servirão de ponto de partida para que possam ir assimilando novos conhecimentos, construindo novas hipóteses e, então, articulando novas aprendizagens.
Ao mesmo tempo em que os erros fazem parte do desenvolvimento, eles são um indicador que mostra onde o aluno anda em seu processo de aprendizagem. Demonstram o que ele não aprendeu ainda, os conceitos que não assimilou e as partes que necessita aprofundar em um determinado campo conceitual. Portanto, representam o pano de fundo do ensino, a matéria prima das intervenções pedagógicas, nas quais o professor vai basear suas ações, reflexões e planejamento.
Partindo desse ponto de vista, chega-se à ideia de correção como uma intervenção importante dentro do processo de ensino. Mas é preciso que ela seja orientada no sentido da superação dos erros observados a cada etapa e da busca de respostas às problematizações realizadas junto com o(s) aluno(s). Ou seja, é preciso que a correção ou revisão de uma escrita na escola tenha como objetivo mais que um texto “limpo” e convencionalmente correto. É necessário que se trabalhe de forma sistematizada, colocando o aluno num papel ativo, para que ele realize aprendizagens de procedimentos de escritor, que lhe permitirão criar novas e mais estáveis hipóteses e referências, bem como desenvolver capacidades de correção cada vez mais autônoma.
Por exemplo, se a criança pergunta sobre como escrever determinada palavra, podemos e devemos informar-lhe a maneira certa. No entanto, se observarmos erros ortográficos no trabalho do aluno, não havendo um questionamento ou solicitação dele no sentido da forma correta, o melhor, em vez de simplesmente corrigir, será questionar-lhe sobre o modo como escreveu (“lê novamente esta palavra que escreveste para ver se não falta alguma letra”… ou “aqui, tem uma letra trocada, vê se descobres qual é”…), para que ele possa refletir a respeito, se dar conta e corrigir ele próprio ou com a ajuda de alguém. Desse modo conseguimos atuar respeitando o tempo e a trajetória das crianças, trabalhando a escrita ortográfica de forma engajada e tornando sua construção uma aprendizagem significativa para os alunos.
Assim, a correção não é a introdução de conceitos já acabados e sim uma alavanca para a sua construção, a partir do nível em que o aluno se encontra e através de um ensino que sistematize as regularidades e irregularidades do idioma. Para que assim seja ela deve ser introduzida no momento adequado, quando a criança manifesta dúvidas, explicita dificuldades ou encontra-se em conflito cognitivo. Esses conflitos serão variáveis de acordo com a sua faixa etária, com as áreas de conhecimento e os conteúdos envolvidos e com suas experiências individuais anteriores em relação a eles, incluídas aqui as experiências e desafios vividos na escola. Por tudo isso o trabalho pedagógico tem de ser algo muito vivo e dinâmico, levando em conta esse constante processo de crescimento e aprendizagem dos alunos a cada etapa da escolaridade e de sua própria construção, mas sempre a partir de orientações didáticas comuns a toda a escola.
A avaliação, nesta concepção, parte de dois eixos: a própria criança como parâmetro de si mesma e de seu processo, de um lado, e o grupo e os objetivos da série, de outro. Deve ocorrer continuamente, acompanhando o desenvolvimento do aluno e do grupo na direção dos objetivos traçados a cada passo.
Como e quando são feitas as correções e revisões de textos?
Procuramos realizar essas atividades de diferentes formas, incluindo, por exemplo, a revisão entre os pares, de modo que os alunos participem delas diretamente, responsabilizem-se pela escrita correta em seus textos e desenvolvam uma postura de dúvida e reflexão sobre a escrita, bem como, gradativamente, de autocorreção ou revisão, à medida que ampliem seus conhecimentos e se apropriem de diferentes formas de realizar essa tarefa.
Não vemos sentido algum naquela prática da escola tradicional de correção pela professora sem a presença do aluno. Isso não quer dizer que a professora não corrija, apenas que, quando o faz, é junto ao aluno, questionando-o, apontando situações em que é necessária a correção, promovendo a discussão dos seus erros e buscando alternativas com ele, fazendo-o pensar, relacionar e elaborar hipóteses, numa atuação que se preocupa mais com a aprendizagem do aluno, do que com cadernos sem erros para tranquilizar os pais.
Da mesma forma, sabe-se que não é produtivo revisar e corrigir tudo o que os alunos produzem, sempre. De qualquer modo isso nem seria possível, nessa perspectiva de trabalho que supõe a participação ativa do aluno, a não ser reduzindo-se o número de propostas de escrita, o que seria uma temeridade!
Por isso, escolhemos apenas alguns dos textos produzidos no trimestre (projeto de escrita) para proceder a todas as etapas de revisão, já que também esse é um trabalho mais exaustivo e demorado. Em relação às outras produções, que servirão a outros objetivos e que não passarão por todas as etapas de revisão, procuramos oportunizar reflexões pontuais sobre aspectos gramaticais e ortográficos que chamem atenção em todos os momentos possíveis, de modo a estimular constantemente a curiosidade e o estabelecimento de relações. Quando as crianças escrevem, reescrevem, leem, individual ou coletivamente, em qualquer situação do dia a dia escolar, é possível e recomendável que o professor lance questionamentos a partir do que observa em suas produções e que aproveite suas questões para problematizar junto ao grupo algum aspecto da escrita, colocando-os a pensar, sempre que possível, sem esperar uma sessão de trabalho de ortografia. Fazemos nossas as palavras de Morais (1998): “Não nos interessa ‘fazer e corrigir’ uma tarefa. Qualquer atividade só tem sentido se for encarada como uma estratégia que permita a explicitação e discussão do que os alunos vão conseguindo elaborar sobre a ortografia.”
No caso das escritas espontâneas dos alunos ainda é importante ressaltar que não se pode controlá-las ou censurá-las, no sentido das palavras “fáceis” ou “difíceis”, frequentes ou raras, que serão usadas. Ao contrário, elas devem ser aproveitadas justamente para “fazer aparecerem”, no momento em que os alunos têm liberdade para criar seus textos, as suas dúvidas ou desconhecimentos ortográficos.
Sabendo, ainda, que para realizar essas revisões os alunos devem ter um trabalho de base, que os “alimente” e que dê conta da construção de regras e da memorização de algumas irregularidades, temos na escola, a partir do 2º ano, sessões regulares de ortografia, previstas na rotina quinzenal ou semanal das turmas. Através delas nos organizamos para desenvolver um trabalho sistemático com esse conteúdo. Também cuidamos para oportunizar ao aluno o distanciamento necessário em relação ao seu texto (um dia de intervalo, pelo menos, entre uma atividade e outra), para que saia um pouco do papel de autor e possa assumir o de revisor, conseguindo, então, detectar aspectos a serem corrigidos.
Além disso, trabalhamos na instrumentalização do aluno para manusear dicionários ou outras fontes de consulta possíveis ou disponíveis e para perguntar a pessoas mais experientes e a estabelecer relações com outras palavras que conhece, de modo que ele possa buscar por si mesmo respostas para suas dúvidas sobre a escrita, desenvolvendo sua autonomia.
E a Caligrafia, é trabalhada na escola?
A caligrafia relaciona-se com o traçado da letra e sua legibilidade. Na escola, normalmente, está associada à letra cursiva (ou “de mão”). Dizemos que aprender caligrafia é aprender a escrever com a letra cursiva (ou com a “letra emendada”, como dizem as crianças).
É bastante comum as crianças mostrarem curiosidade em relação à letra cursiva, relacionando-a com a escrita do adulto, ou seja, com um status a ser conquistado. Assim, elas normalmente estão motivadas e costumam se empenhar bastante nesse trabalho.
Assim, ele inicia, na Projeto, no 2º ano, depois que as crianças já escrevem alfabeticamente (mesmo que ainda não ortograficamente), quando, então, podem se dedicar a alguma outra variável, que não a construção da escrita propriamente dita, trabalho este realizado desde a educação infantil e com a letra bastão (imprensa maiúscula ou caixa alta). Em geral, a partir do 2º trimestre do 2º ano, trabalhamos com a leitura de textos em cursiva (assim como em script ou “letra de imprensa”), para depois explorar a reprodução do traçado de cada letra do alfabeto em cursiva (movimentos amplos primeiro, depois na folha sem linhas, movimentos de vai e vem), utilizando também o caderno de caligrafia (3º trimestre).
No 3º ano, o trabalho continua com a retomada dos traçados no início do ano e, a partir daí, com a prática dessa escrita cursiva, e também da script, no caderno de caligrafia (em sessões em sala e como tarefa de casa), sistematizando e procurando agilizar o seu uso, focando especialmente nas questões de legibilidade e proporcionalidade (relação entre maiúsculas e minúsculas), o que segue no 4º ano. Nesta série, seguimos investindo para obter avanços em termos de agilidade, garantindo a legibilidade, embora sejamos flexíveis para encaminhar situações mais individuais, de alunos que tenham alguma questão ou dificuldade com essa letra. Até porque o mais importante para a escola é que eles escrevam com gosto e de forma desenvolta, com linguagem apropriada e cada vez de forma mais rica, legível e correta.
Encaramos o ensino e a prática com as letras script e cursiva, na escola, como uma oportunidade do aluno enriquecer seu repertório e aprender diferentes tipos de letras. No 5º ano, inclusive, a partir do domínio das 2 letras, o aluno pode escolher, durante os registros de textos em que precisa ser mais ágil, aquela que mais gosta, que acha que traça melhor e com a qual tem mais facilidade e agilidade.
Os casos de dificuldades motoras significativas ou de um ritmo diferenciado de desenvolvimento da própria escrita, quando a criança tem alguma outra questão a resolver ainda, antes de poder se focar nesse trabalho da letra, são menos frequentes, mas acontecem. Nessas situações o aluno pode apresentar resistência e, então, não impomos esse trabalho, na medida em que não consideramos essa habilidade imprescindível. Apenas procuramos que a criança experimente e/ou aprenda os traçados.
Leituras indicadas sobre o tema:
BALDI, Elizabeth. Escrita nas séries iniciais. POA, Ed. Projeto, 2012.
MORAIS, Artur Gomes de. Ortografia: ensinar e aprender. SP, Ática, 1998.
MORAIS (org.). O aprendizado da Ortografia. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 1999.
TEBEROSKY, Ana e TOLCHINSKY, Liliana. Além da alfabetização a aprendizagem fonológica, ortográfica, textual e matemática. São Paulo, Ed. Ática, 1995.
PROJETO – REVISTA DE EDUCAÇÃO, nº 00, jan/99 (Ortografia), Porto Alegre, Ed. Projeto.