Elida Tessler (*)
A minha participação no programa “Artistas convidados” da Escola Projeto tem cheiro de pão fresco. Foi em uma padaria de bairro, no final de uma tarde de outubro de 2019, que recebi o convite para ser a artista estudada em 2020. Chovia muito e o frescor da calçada molhada veio também trazer a sensação de estar me sentindo em casa. Neca Baldi conhece o meu trabalho e sabe o quanto a relação entre a arte e o cotidiano está nele presente. Parece que ela acertou o lugar e a hora de me propor essa atividade. Aceitei o convite.
No início de março de 2020 fiz a primeira visita à sede da escola na José Bonifácio, levando alguns catálogos e livros para que ficassem à disposição na biblioteca, assim antecipando um pouco a conversa nos encontros que ocorreriam mais para o final do ano. Eu tinha a intenção de habitar a biblioteca e fazer dela uma espécie de ateliê provisório. Afinal, uma biblioteca sempre é um espaço propício para criação e experimentação de ideias na interface entre a arte e a literatura, um dos eixos principais que definem o meu trabalho nos últimos anos. Dessa forma, eu estaria também levando para a Escola Projeto um pouco de minha própria casa e de meu modo de conceber o meu trabalho. Atualmente, o meu ateliê vem sendo uma biblioteca particular situada em um apartamento no Bom Fim que pertenceu aos meus avós e aos meus pais, e onde morei, junto com minha família, até meados de 2019.
Meu propósito para iniciar a interação com a comunidade da Escola Projeto foi o de convidá-la para participar de um trabalho específico chamado “Você me dá a sua palavra?”. Este é um trabalho em processo (work in progress) que passei a chamar word in process, já que são as palavras que colocam o trabalho em movimento. A ideia foi a de incluir as palavras escritas em prendedores de roupa de madeira por todos que quisessem envolver-se com a proposta: alunos, professores, familiares e funcionários da escola. Essa obra iniciou em 2004 e, desde então, minha conexão com os espaços do mundo está permeada pelo encontro com o outro, pela transmissão de valores em uma breve conversa, pela sensibilidade das grafias, pela curiosidade acerca das origens de cada participante, pela surpresa dos idiomas, pela responsabilidade política de sustentar as palavras dadas e pela sutileza das indagações que uma simples pergunta é capaz de gerar: Pode ser qualquer palavra?
Essa foi a pergunta que mais escutei durante esses 16 anos de processo contínuo e sem tempo definido para encerrar. Poder dizer sim a cada interpelação como essa foi, para mim, um exercício experimental da liberdade, definição de Mário Pedrosa para a arte, ainda nos anos sessenta no Brasil. Um prendedor de roupas passa de uma mão para outra e, a partir desse gesto simples, o universo da linguagem se amplia e restabelece sentidos diferentes para o que concebemos como arte.
Em março de 2020, sentir-se em casa deixou de ser metáfora e tornou-se uma medida de sobrevivência face ao início desta terrível pandemia que nos assombrou, nos desestabilizou em relação aos nossos hábitos e nos desafiou a viver de modo diferente, a repensar nossos trabalhos, nossas relações sociais, nossos espaços e tudo o que envolve contato físico entre as pessoas. Pandemia, quarentena, isolamento, distanciamento social e higienização são palavras que adentraram abruptamente em nosso vocabulário político. E como realizar virtualmente o gesto de entrega da palavra escrita? Como esticar um fio de varal online? Como atravessar o espaço cibernético com o indizível de cada um?
De forma paralela às atividades previstas pela programação “Artista convidado”, e como reação imediata às restrições de presença e contato físico já, no início da pandemia, criei uma página no Instagram para postar uma palavra por dia escolhida entre as mais de 7.000 recebidas ao longo do tempo. Foi uma forma de colocar em circulação as palavras dadas, com sua potência poética e política de composição de um novo texto, de um novo contexto, de uma nova partitura de vida.
No período entre setembro e dezembro de 2020, posso dizer que habitei muitos endereços e pude me sentir em casa a cada encontro virtual com a coordenação da Escola, com a equipe dos professores e com os familiares dos alunos. Conversei com os alunos em diferentes datas. Entrei em suas “salas de aula”, que poderiam ser o quarto, a sala de visitas ou a cozinha de cada casa. O ambiente familiar e o escolar tornaram-se um só ateliê. Pude ver os desenhos produzidos pelas crianças e adolescentes, suas pinturas fixadas às paredes e suas instalações “tipo varal” que foram construídas com objetos cotidianos de cada um. Da casa, vieram prendedores buscados na lavanderia doméstica, onde cada um escreveu sua palavra, mostrou-a na tela configurada como um mosaico em nossos monitores e emprestou a sua voz para compor um poema sonoro inédito. Como não perceber o envolvimento de todos nesta experiência tão radical de aproximação entre a arte e o cotidiano em uma realidade drasticamente modificada pelo vírus desconhecido?
As palavras dadas foram guardadas e depois transportadas pelas famílias para integrar um varal físico que foi montado pela equipe no pátio da Escola no dia 16 de dezembro, dia do aniversário da Projeto. Com esse trabalho concluído e apresentado dessa maneira, em lugar e hora certa, mais uma vez me senti em casa! Na mesma tarde, esses prendedores me foram entregues como pães quentes saindo do forno, ainda com os ingredientes básicos para fortalecer a ideia de continuidade deste processo que envolve a confiança e o valor das trocas realizadas durante esses últimos três meses.
Agora, todos os prendedores passam a fazer parte do trabalho “Você me dá a sua palavra?”, que será apresentado a partir de 25 de janeiro deste ano na exposição coletiva “Língua solta”, com curadoria de Moacir dos Anjos e Fabiana Morais no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo, em sua reabertura depois da destruição parcial do prédio por um incêndio em 2015.
A palavra fez contato em tempos de distanciamento. Situação complexa e muito desafiadora, como tudo o que estamos vivendo desde o início desta pandemia atroz. Em um primeiro encontro com a equipe pedagógica, Deborah Vier Fischer, ao escrever a palavra cautela me disse: “Uma palavra dada fica guardada. A gente não esquece a palavra que deu”.
Obrigada a toda a comunidade da Escola Projeto por este tempo de convivência e cumplicidade que ficará guardado em minha memória como uma das respostas possíveis ao grande desafio que enfrentamos juntos. Um agradecimento muito especial para Andréa Coelho Paim e Virgínia Veríssimo que, junto com a Neca e a Deborah, me fizeram acreditar, desde o primeiro encontro, que palavrar pela internet também é possível. A partir de hoje e, ao longo dos próximos meses, a página @vocemedasuapalavra estará apresentando as imagens dos 176 prendedores de roupa da Escola Projeto como maneira de continuar a nossa conversa.
Sintam, em cada palavra, um afetuoso um abraço!
(*) Artista visual convidada da Projeto no ano de 2020, cuja obra foi estudada por todas as turmas da escola. Saiba mais sobre a artista e professora em: http://www.elidatessler.com/
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