Celso Gutfreind (3)
“Se não interferimos em nossas preconcepções, com nossa inteligência, nossa memória, nosso desejo, a integração prossegue em seu trabalho de unir, costurar…’’
(Henrique Honigsztejn, A psicologia da criação)
Seja qual for o conceito de arte ou cultura, é possível valorizar a sua importância no crescimento da criança. A todas essas, a psicanálise também cresceu. Ela não é mais criança, e pode muito bem questionar a si própria. E perguntar se o que houve de narrativo (olhares, histórias, canções) entre os dois personagens (mãe e bebê, pai e bebê) não foi mais estruturante do que o mito edípico na disputa entre três (mãe, pai e filho ou filha). A primeira cena pode ter sido mais fundadora do que a segunda.
Seria lógico se não fosse arte ou cultura. Elas nos fazem questionar, num clima propício para o crescimento. E estão presentes no primeiro desafio da criança, o apego. John Bowlby (1973 e 1979) mostrou que, sem a construção de uma base segura, o bebê não vive bem e pode nem sequer sobreviver. Não estamos falando de comida e de calor imprescindíveis: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte”, cantaram os artistas, verdadeiros titãs (A. Antunes, M. Fromer e S. Britto, em Comida, 1987). Estavam, e estamos, expressando o que vem antes e depois: olhar, toque e sentido, imprescindível também.
São trocas descritas, de forma prática, pelo teórico Daniel Stern (1992 e 1997) como os movimentos de uma dança, sintonia de uma sinfonia, orquestra afinada em seus momentos decisivos, como expressam os versos de Chico Buarque: “O meu samba assim, marcava na cadência os seus passos/O meu sonho embalava no carinho dos seus braços.’’(Quem te viu, Quem te vê, 1967.)
Para sobreviver afetivamente, é preciso harmonia, poesia na ação entre dois. É preciso arte, ritmo, tanto quanto o ritmo define a criação poética e humana. Já observamos o suficiente, para sentir que os bebês também vivem da prosódia. Nascem nela e a ela vão recorrer pelo resto de suas vidas. Banhar-se de sons faz bem para a saúde. Eles sinalizam os estados da alma com que vamos nos identificar. Eles soam o que somos. As notas musicais – que nem o brilho do olhar mudo – nos espelham e nos acolhem, como na metáfora da cena final de Glória feita de sangue, filme de Stanley Kubrick (1957).
Os soldados franceses, abalados pela guerra, reagem com pitos e apuros ao pequeno espetáculo de uma alemã obrigada a diverti-los, numa língua estrangeira. Ela não é profissional do teatro nem da dança; é apenas uma prisioneira de guerra. Os homens se agitam, gozando de sua cara e de seu corpo, onde projetam suas próprias angústias sexuais e de abandono. Ela parece incapaz como uma mãe diante do bebê recém-nascido. Ela parece incapaz como uma professora diante de crianças ansiosas com a separação de suas mães. Ela não é profissional de nada e, perdida como a mãe diante do bebê recém-nascido, entoa uma cantiga alemã de ninar que, para os franceses, não faz nenhum sentido além da melodia. Pois esta melodia de mãe triste e maternalmente artista tem o poder de acalmar e comover uma tropa de soldados (crianças) diante da missão impossível de uma guerra (uma vida). Eles agora podem voltar à realidade protegidos pela metáfora. E fazer o que mais precisam: chorar. O medo já tem melodia e está mais familiar.
Fora do ritmo só há danação, como há horas vem nos dizendo Mario Quintana (1981), em outra metáfora expressiva do que estamos sentindo agora.
Mas chega o segundo desafio de uma criança: separar-se, andar sozinha. Não se pode estar com a mãe para sempre. Não se deve estar com a mãe para sempre, a não ser por dentro. Ela nos deu o calor, a comida – representantes do amor – e, por meio do ritmo e da poesia, deu-nos a base segura. Ela nos olhou, nos tocou e nos contou, mas a guerra continua à cata de novas histórias de amores, e é preciso partir.
Como é que se faz para se despedir? Winnicot (1951 e 1971) sugeriu que é pela arte, pela cultura, em qualquer uma de suas definições. Para ele a opção possível é construir um espaço, lugar abstrato, que não seja propriamente o eu nem o outro, mas sim as criações de todos os outros que o precederam. Aí podem vir as criações novas, autênticas, e já se pode partir. É um espaço entre dois, estar próximo antes de afastar-se rumo ao horizonte. Isto equivale a pensar concretamente, no ursinho de pelúcia que a criança agarra para dormir, e no plano abstrato, nas canções, nas histórias, mitos que a criança também agarra. Equivale pensar na arte, na cultura e na palavra. É nelas que a criança investe para partir. E, partindo com a mãe nas ventas – nos ecos da cultura, palavra evocando ausência e presença -, poderá criar sua própria arte em seu trabalho, seus amores, sua vida.
Serge Lebovici (1998 e 2002) também descreveu essa viagem ainda de forma mais simples. Tendo encontrado mãe e pai preocupados com a gente, poderemos mergulhar na comunidade. Mas, se algum dos protagonistas – mãe, pai, comunidade – falhar muito, o sofrimento psíquico será maior, e as metáforas serão mais pobres. Aí, sim, poderá haver morte, pane de linguagem e símbolo. Haverá menos cultura, não no sentido erudito do termo, mas no afetivo, capacidade de criar.
Até agora nada definimos; um pouco, porque estamos falando de cultura e arte, terrenos de definições imprecisas; outro, porque estamos falando de infância, espaço ainda recente, conforme atestam os estudos maduros de gente como Philippe Ariès (1973); outro mais, porque a psicanálise cresceu, e Donald Winnicott (1951 e 1971), René Diatkine (1994) ou Peter Fonagy (2004) expressam com propriedade que o mais importante, no desenvolvimento de uma criança, é a aquisição da capacidade de reflexão, e não da informação em si. Trata-se de construir função, não conteúdo; esse vem depois. Mas não adianta: a gente reflete e sai querendo definir, organizar o caos da nossa ignorância. Resta-nos a humildade de perguntar. Afinal, entre a cultura e a arte, o que é uma criança? Resta, como sempre, tentar responder contando histórias.
Certo dia, brincando com uma criança, ela atou uma corda a um balão e segurou a ponta; depois, me deu a outra mão e me convidou para ir junto. Eu, que sou profissional, mas não sou burro, aceitei na hora. – Para onde vamos? – perguntei meio assustado. Era criança, não queria responder. Desejava perguntar, viajar, curtir o espanto de imaginar. E limitou-se a comentar o quanto a Terra parecia pequena, do alto daquele balão.
Depois de horas de segundos de viagem, na falta de pergunta mais inteligente, repeti a anterior só para me sentir mais conectado, menos sozinho, talvez. Talvez cansada da minha lógica adulta, respondeu que havíamos andado muito e tínhamos chegado a longínqua avenida Assis Brasil.
Então, era esse o outro mundo, a avenida Assis Brasil, com suas pistas de asfalto, corredor de ônibus e suas pizzarias a que a criança nunca tinha ido fora da brincadeira… Não precisamos sair do Estado, sequer da cidade. Entramos numa pizzaria, a mais bacana de todas. Escolhemos um lugar perto da janela, o mais bacana de todos. Bebemos coca-cola antes de comer, comemos pizza de chocolate com gestos precisos, cortando o ar. Tomamos mais coca-cola. E fiquei pensando que, de todas as definições de infância, a mais próxima valoriza a capacidade de inventar outro mundo e nos aproxima, novamente, da arte e da cultura.
Aquela criança parecia feliz do nosso encontro e da sua imaginação onde era possível comer as pizzas caras da avenida Assis Brasil. Eu também estava feliz, embora lamentasse a ideia de que o desenvolvimento, depois de construir habilidades motoras, cognitivas e afetivas, vai nos tirando, na maioria dos casos, a facilidade de construir outro mundo, a menos que a gente insista em guardar, dentro de nós, a criança (o artista) que fomos um dia. Ela me fez mais disposto a insistir e a guardar.
Dali em diante, eu me convenci de que à criança cabe brincar. E, brincando, construir o espaço de arte e cultura que lhe permite construir-se, contar-se e crescer. Ao adulto cabe cuidar desta criança, de dentro e fora dele, para guardar com unhas, alma e dentes a chance de também continuar contando, crescendo e construindo.
Mas não deu tempo de continuar pensando. A realidade da imaginação era mais urgente. O balão rugia o seu motor invisível e acabava de chegar mais longe ainda. Cachoeirinha – anunciou -, antes de partir de verdade daquele Posto de Saúde, repleto de flagelos sociais, mas também de infância, arte e cultura. E de um saber possível de se utilizar em nossas casas.
Foi o que fiz. À noite, ao reencontrar minha filha, senti que era preciso viajar. Foi o que fizemos, desajeitados como filha e pai, rolando no chão frio e feliz.
(1) Do livro “Narrar, ser mãe, ser pai e outros ensaios sobre parentalidade”, RJ, Ed. Difel, 2010 (capítulo 9, págs.181 a 187), publicado com a devida autorização da editora e do autor. Para interessados(as) no livro, como na editora está “fora de estoque”, indicamos a Estante Virtual, onde há alguns exemplares disponíveis.
(2) Texto dedicado a Ivan Fetter, exímio narrador de Stanley Kubrick.
(3) Pai de ex-aluna, psicanalista e escritor, colaborador frequente deste blog.