Celso Gutfreind (**)
“minha bisavó reclamava que minha avó era muito tímida
minha avó pressionou minha mãe a ser menos cética
minha mãe me educou para ser bem lúcida
e eu espero que minha filha fuja deste cárcere
que é passar a vida transferindo dívidas”Martha Medeiros, De cara lavada
Das máximas de meu avô, a maior era: – A gripe entra pelos pés.
Desde que ouvi isso pela primeira vez, cresci, casei e tive filhos. Estudei a ciência, e esta, mais de três vezes, provou com folga que a gripe não entra pelos pés. Entra pelo nariz, pela boca e pela falta de imunidade.
Adiantou? Nada. É me esquecer de pôr as meias no verão, as pantufas no inverno. É abusar do chinelo, ou pior, dos pés no chão. E a gripe entra. Contra a lógica, a ciência, a vacina, e a favor do meu avô.
Mas não sou o único. A gripe entra pelos pés da minha mãe, de meu pai e de minha tia-avó tirana.
Toda família tem uma tia-avó tirana. Mas nem toda tem pés tão frágeis por onde a gripe entra. Pode parecer anedota. Mas é sério e, mais, o carro-chefe deste exemplo, tentando reunir parentalidade, cultura, funcionamento mental, escola e, espiando todos eles, psicanálise.
A anedota, sem conceitos – eles envelhecem, as histórias ficam -, conta o que é cultura, representação social, crenças e valores compartilhados por um grupo. Eles constituem o sujeito. Eles nos constituem. É o que disse o antropólogo Roberto da Matta (1986) sobre o sentido da palavra personalidade. Há um para o dicionário, outro para cada grupo. Estamos agora olhando para o grupo.
Podemos ir mais longe; as crenças influenciam o sentido que mãe, pai ou cuidador atribuem (projetam) ao bebê, que os incorpora (introjeta) e acaba sendo aquilo mesmo. Este é o ponto em que interação dual se confunde com interação grupal. Em que indivíduo e cultura se misturam, se influenciam e andam juntos. Como já vimos, é possível dizer que somos, a partir de nosso potencial genético, o resultado dos sentidos que pais e comunidade nos atribuíram.
Falamos mal dos conceitos e não vamos voltar atrás. Eu, pelo menos, não volto. Meu outro avô me transmitiu certo jeito de bancar o corajoso com as ideias. E também o valor de contar histórias, ou seja, a mesma coisa. Agora vou contar duas.
A primeira é a de José. Ele nasceu há oito anos, e seu parto, como diz nossa cultura, foi um parto. Faltou oxigênio no cérebro, a falta foi breve, mas o suficiente para deixá-lo sete dias na UTI Neonatal, sondado em todos os seus orifícios, fincado por todos os lados. A mãe de José, enfermeira sensível, vinculou-se bem com o filho, e as interações mãe-bebê foram legais. O pai suportou menos e, três anos depois, afastou-se da mulher, embora tenha continuado a ver o filho regularmente. Regular na presença, no afeto. Pelo bastante de mãe mais o razoável de pai, José desenvolveu-se bem; falou quando e como tinha que falar, andou como e quando tinha de andar, e cumpriu toda a cartilha do desenvolvimento psicomotor. Isso sem falar na capacidade de subjetividade e de viver belezas, seu bem maior. O saldo negativo do passado foi um estrabismo, uma leve dificuldade motora num dos membros inferiores e moderada dislalia, confundindo, às vezes, os sons das palavras emitidas com inteligência e elegância. No entanto, o pior do saldo foi certa crença criada no pequeno grupo de José: as primeiras horas entre a vida e a morte, os primeiros dias, ainda entre elas, as primeiras semanas na vida sob a sombra da morte, geraram a incômoda ideia de que José era um menino doente, não se desenvolveria bem e poderia morrer a qualquer momento.
Recebi José quando ele tinha seis anos e já patinava na escola. Chegou devidamente medicado, diagnosticado, mas bem. Como de hábito, ouvi primeiro seus pais e sofri um impacto entre a descrição de José e o José que vi.
O que vi era muito mais saudável do que o que eu ouvi. Era saudável, e sua leve dificuldade de movimentar o membro inferior direito logo se confundiu com a minha perna esquerda, quatro centímetros maior que a direita. O estrabismo não me pareceu mais acentuado que os de Juliette Binoche e Christophe Lambert, atores sensuais. Quanto à dislalia, era menor que a do Fafã, colega de infância, hoje juiz de direito respeitadíssimo em suas sentenças longas e brilhantes, apesar de fanhosas.
Então tive, como de hábito, um trabalho de oftalmologista no sentido de interferir na visão, na crença, na cultura. Pelo pouco que hoje se conhece, isto muda é com encontro, conversa, novas identificações, muita narratividade, empatia, histórias; enfim, psicanálise.
Tive o apoio da escola, que logo olhou junto comigo, e esta mãe, doidinha para ver com mais otimismo, passou a olhar com a gente. Era uma turma inteira – matriz de apoio – com novos olhares, dispostos a novos sentidos: ‘’Com muita frequência é o olhar do adulto que bloqueia o desenvolvimento da criança’’, escreve Cyrulnik (2004, p.112).
Penúltima notícia de José: insatisfeita com o trabalho da psicopedagoga e/ou atraída pelo poder de um passado, a mãe mudou de profissional e encontrou uma que retestou José, diagnosticou José e retomou a necessidade de medicar um José àquela altura sem medicação. Escolheu uma de sua cultura antiga, lá dos primeiros anos de José, repleta de olhar com classificação e sem muita esperança.
Esta história deseja ser aberta. Ela não tem mensagem e apenas quer ser viva como a de meu avô. Por isso, não vai concluir no sentido de dizer que testar, diagnosticar e medicar são dispensáveis. Longe disso, por vezes colaboram neste terreno tão escorregadio em que se acompanha o desenvolvimento de uma criança.
Mas cada vez é única, e, na de José, o mais importante parecia-nos combater o pior que havia na cultura da família: a crença de que ele era doente por ter estado um dia e, hoje, apresentar alguma irregularidade na perna e na voz. Aliás, em termos de macrocultura, vivemos uma ditadura da forma perfeita. Minha sorte é ter adquirido os valores de meu avô barrigudo, que me permitem tomar chope (moderadamente) e comer espaguete (menos moderadamente) em paz.
Última notícia de José: educadamente, a escola e eu pegamos a nova psicopedagoga pelo cangote e, com muito encontro, história, empatia e narratividade, relativizamos o teste e o diagnóstico. Ainda ontem, escola, terapeuta e pais questionaram se o que fizemos com José é inclusão ou psicanálise. Na verdade, desconfiamos dos nomes e de que ele já estava incluído havia muito tempo. E não sabíamos. Hoje, como bons oftalmologistas, suspeitamos de que foi inclusão sim. E psicanálise.
(*) Texto selecionado do livro Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade, Rio de Janeiro: Ed. Difel, 2010, Cap. 10, págs. 198 a 202, publicado com a devida autorização do autor e da editora. Os interessados(as) no livro podem adquiri-lo pelo site da editora – https://www.record.com.br/produto/narrar-ser-mae-ser-pai/ – ou pela Estante Virtual, onde há alguns exemplares (usados) disponíveis.
(**) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, colaborador deste blog.