Celso Gutfreind (2)
Não há pais à vontade se não contarem histórias: as suas próprias, de preferência, ou as alheias que, ao serem escolhidas, também lhes dizem respeito. Encontros em torno de histórias são sagrados (Winnicott, 1984). Isso inclui qualquer narrativa como contos, cantos, relatos de vida. Conversa-fiada. Qualquer história que faça a ponte entre pais e filhos, e promova a interação com gesto, toque e olhar, como a do pai que eu via, no Jardim Botânico, no quinto distrito de Paris. A filha pequena olhava-o fascinada. Ele parecia estar cantando uma ária de Mozart, destrinchando um trecho de Perrault. Pelo menos, era o que pensava quem os via de longe. Eu os via de longe. Eu não estava longe de me tornar pai e me punha a sonhar em ser bacana como aquele, com sua palavra e melodia capazes de provocar tamanho encanto. Durante dias, não consegui chegar perto e temi praticar uma invasão à privacidade, tão temida pelos franceses em seu modo discreto e sereno de encarar o vínculo. Ao aproximar-me, finalmente, à espera de topar com um ouro poético saindo daquela voz, ouvi a mais prosaica das anticanções, descrevendo, simples e denotativamente, cada passo do caminho: um degrau, outro degrau, outro mais… Coisa sem graça, música sem abstração, mas a filha olhava com fascínio aquele pai suficientemente narrativo para ela, embora decepcionante para mim (Gutfreind, 2003; Corso & Corso, 2006). Mas, pensando melhor, o fundamental estava ali: prosódia, banho de voz, olhar, gesto, interlocução, estar junto (Stern, 1977 e 1997).
Narrar é mais do que um instrumento que colabora no processo de parentalidade: é indispensável, confunde-se com ele. Para Alberto Konicheckis (2008), o narrativo abre um espaço psíquico de ilusão, que se opõe à desintegração. O resultado é perder caos e ganhar sentido.
A psicoterapia e a análise, definidas a priori como um encontro narrativo, oferecem nova oportunidade de resgatar essas funções, a partir de um ambiente em que se conta. Elas podem ser capazes de fomentar ou devolver a capacidade de contar, chegar ao(s) símbolo(s) e adentrar o caminho em que se constrói a subjetividade (3). Ou a saúde mental. A psicanálise e a narrativa têm o objetivo principal em comum de gerar subjetividade.
Pais nascem ouvindo, ainda filhos. Seu berço é feito de corpos à espera de palavras, gestos em busca de sentido, caos à cata de segurança e vínculo. Sua estrada é feita de silêncio e palavras à espera de sentidos e histórias, construídos nos encontros da vida.
(1) Trecho selecionado do livro Narrar, ser mãe, ser pai & outros ensaios sobre a parentalidade, Rio de Janeiro: Ed. Difel, 2010, Cap. 1, págs 33 a 35, publicado com a devida autorização da editora e do autor. Para interessados(as) no livro, como na editora está “fora de estoque”, indicamos a Estante Virtual, onde há alguns exemplares disponíveis: https://www.estantevirtual.com.br/livros/celso-gutfreind/narrar-ser-mae-ser-pai/847958922?show_suggestion=0
(2) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, colaborador deste blog.
(3) Daniel Stern (1991) descreveu, de forma poética, o diário de um bebê, desde as suas primeiras vivências sensoriais, junto ao cuidador, num esquema de “estar com”, até a real capacidade de falar de si e refletir sobre as suas próprias experiências, ou seja, contar uma história, o que se deu aos quatro anos de idade. Para Stern, construir uma história é buscar uma explicação, um sentido, tarefa que inicia desde o nascimento.