Celso Gutfreind (2)
Amor assim vos dê trégua talvez
Enquanto sobre mim todo o furor
De que é capaz despeja de uma vez.
Gaspara Stampa (3)
A loja do Centro era um mafuá de barulheira, bicharada e gente.
A vendedora garantiu que todos os animais tinham licença. O Ibama sabia de tudo e permitia as vendas. Fiquei em dúvida quanto ao sagui e o tucano. Também em relação à jiboia, que a minha filha tocou, antes de olhar. O olhar da filha era certeiro: este sim garantiu que, sem bicho, a gente não sairia. Dizer não para a cobra foi fácil, mais difícil foi com o sagui.
Desviamos das tartarugas, dos ramsters e saímos com um peixe mais os apetrechos: aquário, cloro, ração e redinha. Agora era eu que olhava, sem nenhuma dúvida: sorriso de criança vale uma jiboia.
A vendedora também falou com convicção: água uma vez por semana, um punhado de comida, e o bicho terá vida longa.
Não teve. Viveu vinte dias. Tempo suficiente para ganhar nome, lugar (o quarto da filha) e muito apego. O apego é o amor que acontece. Cuida. Toca. Olha. E agora olhava a morte inconfundível no fundo do aquário.
Não avisei que não era pra dar? – entoava o coro dos familiares.
Ainda tinha de dar a notícia. Era o fim. A primeira morte, indecisa entre ficar ou mover-se no olhar dos sobreviventes.
Peixes são frágeis, eu disse. Não foi culpa tua, acrescentei. O calor, talvez, a vida curta. A nossa vida é mais longa. Eu ia jogando palavras com esperança de esconder a morte. Eu nada escondia.
Então, eu sugeri que fizesse um desenho. Ela, que eu fizesse um poema. Falou que podia ser sem rima. Gostei da ideia, mas fiz com: lembrança e esperança, tristeza e beleza, eu precisava de algum ritmo. Ela desenhou uma menina e um peixe, os dois rindo, tudo bem colorido como ela precisava. Depois, entoou uma canção em inglês: I love my fish, I love my fish, I will never forget you. Foi a primeira da trilha sonora. A segunda rodou no radinho do zelador, um pagodinho pungente. E teve a música dos choros. Choramos os três, o zelador ao lembrar-se de uma prima que morrera em Livramento. Eu, porque já não podia esconder as mortes na vida da filha. Ela, porque as vivia.
O peixe chamava-se Lilibete e continuou se chamando quando a filha ainda me olhava mais preparada para a tristeza e a alegria que viessem. Vivia a primeira morte, mas também a primeira vida depois dela.
Quando anoiteceu, sorríamos. Ela, do jogo de estátua com a vizinha, onde o fim parecia provisório, de brinquedo. Eu, de não ter ouvido os familiares. Coros erram se prescrevem ao invés de cantar.
Agora, já podíamos adotar um cão finito. Ou amigos, disfarçados de para sempre como nós.
(1) Texto publicado no livro A Dança das Palavras: poesia e narrativa para pais e professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 90 a 92 (https://arteseoficios.websiteseguro.com/loja/detalhe.php?id=341), reproduzido aqui com a devida autorização do autor e da editora.
(2) Psicanalista e escritor, colaborador deste blog e pai de ex-aluna da escola.
(3) Tradução de Sérgio Duarte.