Felipe Ewald (*)
Sugestão: ler com o acompanhamento de cantos mbya guarani ouvindo o som do vídeo ao lado.
Chegamos na Lomba do Pinheiro e descemos dos dois ônibus. Deia, uma das coordenadoras que acompanhava o grupo de crianças do G4 e G5 e das duas turmas do 2º ano, aponta pra mim e diz: ‘O Felipe pode nos levar, já que ele já conhece a aldeia’. Com surpresa, aceitei a posição e fui conduzindo o grupo. Na minha memória adamante, tínhamos que subir e pegar à direita em algum momento – tinha estado na aldeia Anhetenguá (na Lomba do Pinheiro) havia mais de 10 anos.
Segui firme, confiante, à frente do grupo. Ia tentando enxergar mais adiante, na expectativa da entrada, e nada… Comecei a pensar nas perninhas das crianças que vinham junto. Bateu um receio, melhor perguntar! A sorte: finalmente uma casa onde havia gente pela frente: “A entrada pra aldeia é por aqui?” “- Olha, lá pra cima tem uma, mas é bem longinho…” “E tem uma ali embaixo (do lado esquerdo)”. Puxa! Titubeio, mas melhor voltar. VOLTAAA!!
Primeira vivência do dia: os mbya guarani costumam ser discretos, agem pela esquiva (isso aprendi n’A esquiva do Xondaro (https://elefanteeditora.com.br/produto/a-esquiva-do-xondaro/), do Lucas Keese dos Santos).
O guia, distraído, se perdeu, mas parece que se achou… Voltamos! Mais uns 30 passos já chegávamos de novo no ônibus, tão perto era a entrada, mas à esquerda. Chegamos, eu ainda à frente. “Nhande ka’aruju!” (Boa tarde!) Já fui entregando o fumo de corda que tinha trazido – parte da relação de trocas que aprendi em outras visitas, acompanhando pessoas mais experientes. Quem recebeu foi o Maurício, professor na escola da aldeia e filho do cacique Cirilo.
Mais uma vivência: minha liderança errante se conecta bem ao fato de não ser um bom orador. As palavras bonitas não me saem pela boca, vêm no máximo, se é que vêm, pelas letras, algo pouco útil pro reconhecimento de liderança entre os mbya guarani (esse conhecimento me vem pela Sociedade Contra o Estado (https://www.ubueditora.com.br/sociedade-contra-o-estado.html), do Pierre Clastres).
Maurício nos indicou para formarmos uma grande roda debaixo de uma área coberta e falou bem baixinho, pouco inteligível na grande roda, o que incomodou algumas crianças, mas possibilitou a experiência da moderação, da ascese e medida, da recusa do excesso.
Veio um grupo de crianças, meninas e meninos, acompanhadas de músicos. Cantaram marcando o ritmo com os pés, elas no mesmo lugar, eles avançando e retornando um pé por vez. Depois representaram a dança do xondaro, girando na roda, ora de frente ora de costas. Cantar para os mbya é uma forma primordial de comunicação – tanto com a comunidade quanto com Nhanderú (pai primeiro) -, de expressar alegria, respeito e gratidão. Os cantos ajudam a atualizar memórias, territórios e saberes sagrados e ancestrais (isso aprendi na Caixa Educativa Os Guarani Mbyá – https://www.ufrgs.br/museu/cosmo-sonica#aprendizagens-da-escuta –, do Museu da UFRGS).
Chegaram as palavras bonitas e respeitadas de liderança do Cirilo, que discursou sobre a necessidade de nós juruá conhecermos o modo de vida dos guarani para que saibamos respeitar. Ao fim, ainda largou um elogio à escola: não lembrava de um grupo de crianças que tivesse conseguido passar todo aquele tempo escutando com paciência, sem serem constantemente admoestadas pelas professoras. Disse que até pareciam guaranis.
Passamos ao lanche em espaço a céu aberto: pão de milho, beiju, batata doce (cozida na brasa), mandioca (cozida na taquara) e um pão trançado no graveto. Uma delícia! As crianças foram experimentando, com diferentes apreciações. Ficamos por ali, perto da fogueira. Logo apareceu uma bola e a interação com as crianças da aldeia.
A brincadeira, como a alegria, é a prova dos nove!
A chuva veio e bagunçou os planos. Ficamos de molho na área coberta. Mais brincadeira de integração: o reloginho – uma criança, no centro da roda com uma longa folha de bananeira, gira no próprio eixo e as outras crianças saltam quando a folha se aproxima.
Momento de estiagem: vamos aproveitar e fazer a trilha! Mas rápido, que o tempo é curto – nos tomamos do ímpeto compartimentador juruá – estamos no espaço mbya, mas ainda somos parte do mundo não indígena. E aí vimos algo que considero marcante nas crianças da Projeto: não há atropelo, todos respeitam o tempo de cada um, se ajudam. Maurício mostrou algumas armadilhas no meio da mata: para pássaros e tatus. Cruzamos um pequeno vale com uma sanga e depois voltamos. Não dava para ir até o fim.
Estava na hora – a marcação, os compartimentos, o tempo duro. Contraste. Bom apreciar os conhecimentos com outras réguas, sob outras perspectivas. As crianças ampliaram seu repertório de diversidade: aqui perto, dentro da cidade mesmo, há pessoas que falam outra língua, vivem de outros jeitos. Quando cruzarem com os mbya e seu artesanato na Redenção ou no centro já saberão um pouco mais sobre eles!
(*) Pai de aluno do 2º ano da escola e jornalista.