Celso Gutfreind (2)
Como não chamar de trauma se foi tão de repente? A avó alertara: – Piscarás o olho, e o tempo passou. Mas que neto ouve, profundamente, a filosofia de uma avó?
De repente, filha, estavas grande, como fiquei para meu pai pouco depois de ouvir a avó. Estavas a mais de década do último carrossel. Eu ainda podia rever um filme que vimos juntos, correr um pátio que corremos separados, voltar a buscar-te da escola no dia que pediste um picolé, e era inverno. Não dei, filha, e sei que já é tarde para desculpar-me. Piscarás o olho, serás mãe e verás o quanto erramos nos instantes, movidos pela sensação de que estamos construindo o futuro.
O futuro chegou, filha, e dói mais do que uma foto na parede do Drummond.
Posso olhar fotos, recorrer a um choro digno, menos se há no fundo a canção O Caderno, com Toquinho. Mas tem dores que não posso mais enfrentar. Não consigo, por exemplo, ver-te no carrossel. Na Redenção, ou em Montpelier, mal completas a primeira volta, e eu desabo. A avó esqueceu-se de alertar que a impossibilidade do retorno dói mais que o joelho esfolado ou injeção de penicilina. Sufoca mais do que asma e mata mais do que a morte em si.
Dirias que eu exagero, como o disseste na tarde fria do picolé que não te dei. Mas sigo não podendo ver o carrossel, com a sensação de que ser pai e mãe é dramático, mais ainda depois que os olhos piscam.
Eu não sabia, mas hoje desconfio de que, ao crescer, a criança devolve a angústia ao adulto. Lembro-me da tua, que foi minha, com o desconhecido a cada nome que tua mãe e eu te pronunciávamos. Quando os nomes não eram suficientes, pegávamos na tua mão e te abraçávamos. Bastava. Mas a avó não conseguiu me explicar por que a angústia reaparece multiplicada, na volta.
A dor resiste a leite, casaco, remédio. Sabemos que, em casos de diagnósticos vagos, a medicina tem efeitos limitados. Mas, filha, eu não quero que voltes. Digo, não quero que voltes porque quero que voltes. Quero que vás. Suportarei a piscada e não moverei uma palha para evitar o fogo da tua vida. Entre nós, será uma forma de eu voltar a ser grande, diante de ti, como pareci um dia. Há de ser meu derradeiro, senão único, ato de heroísmo: não atrapalhar teus sentimentos com os meus.
De resto, recorro à minha religião de escrever, como escrevo agora. Confesso que queria mais, tipo a crença em outra vida. Reencarnasse, seria mais comedido para ouvir avós. E menos, para evitar sorvetes. No instante de grandeza não mexia, mas trocava, sem piscar, por qualquer pequeno momento contigo.
(1) Texto publicado no livro A Dança das Palavras: Poesia e Narrativa para Pais e Professores, Ed. Artes e Ofícios, 2012, págs. 113 e 114 (https://arteseoficios.com.br/loja/detalhe.php?id=341), reproduzido aqui com a devida autorização do autor e da editora.
(2) Psicanalista e escritor, colaborador deste blog e pai de ex-aluna da escola.