Priscila Duarte Guerra (*)
Júlia completou 3 anos em março. Eu sempre imaginei que em algum momento ela enfrentaria algum sofrimento por ser uma menina negra em uma família branca em uma sociedade tão racista. Só não pensei que seria tão cedo.
No banho, enquanto eu calmamente desembaraçava os cabelos dela com os dedos e comentava o quanto gostava de fazer aquilo, ela me perguntou:
– Mãe, eu sou loira?
– Não, filha.
– E tu?
– Também não.
A conversa continuou e me ocorreu que talvez ela não soubesse o que significava cabelo loiro. Perguntei. Ela respondeu: é o cabelo brilhante.
A essa altura meu coração de mãe já estava acelerado. Acelerado de medo – eu não estou preparada pra isso. De culpa – eu não ofereço referências adequadas pra ela. De raiva – o que aconteceu pra gerar essa conversa? Mas era só o começo. Eu respirei fundo e segui.
– O teu cabelo brilha, filha. O meu cabelo brilha. Mas nós não somos loiras. Loiras são as pessoas que tem o cabelo amarelo.
– Dá pra tirar todo o meu cabelo e colocar um cabelo loiro?
Meu coração só não parou de bater naquele instante, porque eu precisei de horas repassando a conversa na minha cabeça pra acreditar que era verdade. E pra juntar todas as peças de um quebra-cabeça formado por várias pequenas conversas desconexas e finalmente entender que ela já tem problemas de aceitação por conta do racismo que sofre.
Tenho certeza que nenhuma pessoa negra que ouvisse minha filha falando demoraria tanto tempo pra entender. A Júlia já tinha me perguntado, dias atrás, se eu podia alisar o cabelo dela e eu tinha pensado “não, ela não falou isso”. Ou, no máximo: “ela vê meu cabelo e quer igual”. Porque, nós, pessoas brancas legais, simplesmente fingimos que racismo não existe.
A Júlia não sabia o que era cabelo loiro, mas entendeu que era legal. Eu sempre entendi que racismo era uma merda, mas a verdade é que eu não fazia a menor ideia do que realmente era.
Eu não fazia ideia de como ela seria olhada cada vez que vai a um shopping. Nem de que ela seria assediada em tantas festas de aniversário. De que uma turista estrangeira pediria pra tirar fotos com ela na praia, como se fosse um ser exótico. Eu até já tinha pensado sobre isso, mas não imaginava qual seria a sensação de entrar em uma loja de brinquedos com minha filha negra e encontrar uma parede inteira, enorme, repleta de bonecas brancas – e arrastá-la pro outro lado da loja, tentando impedi-la de ver. Eu não fazia a menor ideia da raiva que eu sentiria dos programas infantis e de sua quase totalidade de personagens brancos. E de como eu procuraria desesperadamente personagens com cabelo afro – pra finalmente sentir (porque sentir é muito mais do que entender) como representatividade importa. Eu não fazia a menor ideia de que as outras crianças – crianças desconhecidas, em locais públicos – iriam querer tocar no cabelo dela o tempo todo, mesmo com ela demonstrando desconforto, e de que tão cedo ela teria que aprender a impor limites. E passava a anos-luz de mim a ideia de que alguma criança não iria querer brincar com ela por ser negra.
Eu, na minha fantasia de mãe – e de mulher branca, eu sei – acreditava que eu encheria o reservatório de amor da minha filha até transbordar e com isso eu a protegeria. Eu pensei que ela se olharia no espelho e veria o que eu vejo: a menina mais linda, inteligente e divertida que eu conheço. Mas o mundo passa o tempo todo dizendo a ela o contrário. Que força uma mãe e um pai tem diante de todo o resto?
Faz dois dias que eu penso e choro. Abraço a Ju bem apertado, querendo tirar a dor dela e trazer pra mim. Mas não é sobre mim. Porque eu nunca vou ser alvo daquele olhar. Eu dificilmente vou ser a única pessoa da minha cor em uma festa. Eu nunca vou prender meu cabelo querendo soltá-lo e eu jamais fiquei de fora de uma brincadeira por causa da cor da minha pele. A minha dor é imensa. Eu sinto uma raiva que eu não conhecia, uma sensação de impotência misturada a uma urgência de mudar o mundo. Mas a dor que a Júlia sente eu nunca saberei como é.
Eu tento ensinar meus filhos a serem gentis. Mas finalmente entendo que preciso ensinar minha filha a ser forte. Júlia é mulher. É negra. E o mundo não é nada gentil com mulheres negras.
(*) Priscila é mãe da Júlia (foto), aluna do Grupo 3