Maria da Glória Lopes Kopp (1)
Verônica Alfonsin (2)
A reflexão sobre o ensino de história para crianças pode ser orientada por algumas perguntas. Entre elas: como podemos tratar assuntos complexos como a sobrevivência humana no inquieto planeta Terra? Como conectar atividades lúdicas do universo infantil com conhecimentos científicos de ponta?
Vivemos em um tempo de acesso à informação e ao conhecimento científico. Um tempo em que as portas do conhecimento foram alargadas pelo mundo virtual. Com isso, algumas crianças a partir dos cinco anos de idade, já conhecem nomes científicos, grupos de animais pretéritos, características físicas e alimentares de seres primitivos da Terra, podendo falar de seres extintos como as trilobitas marinhas do Paleozoico. Temas sobre a Terra povoam o imaginário infantil. Um exemplo disso são os dinossauros. Os grandes bichões da Era Mesozoica, popularizados pela indústria cinematográfica e de brinquedos, são objetos de curiosidade e colecionados, especialmente por meninos. Assim, as crianças são capazes de narrar e representar eventos como erupção de vulcões, queda de meteoros e trágicas extinções da vida ocorridas no planeta que habitamos. Conversas que são raras mesmo entre adultos ganham forma em bonecos, livros e objetos destinados aos pequenos.
No universo infantil de cartinhas, dinossauros de borracha e eletrônicos, a gurizada é capaz de identificar o tempo em que viveram os impressionantes animais: no Período Triássico, no Jurássico ou no Cretáceo. Nos documentários que assistem, ou nos livros que leem, a meninada aprende sobre o grande continente Pangeia, as placas tectônicas e a deriva continental. Desde cedo, de forma quase autônoma, no ambiente familiar, essas crianças lidam com o fato de que habitamos um planeta em constante transformação.
A partir desse contexto, formulamos uma proposta didática que visa potencializar o conhecimento dessa nova geração, adquirido de forma espontânea, estimulando a presença também das meninas no universo das ciências, construindo sensibilidades e habilidades específicas para quem terá no horizonte adulto a regeneração planetária. Assim, em 2023, desenvolvemos as Práticas em História no Museu da Escola Projeto. Na oficina de museu, como foi apelidada, tratamos A Chegada da humanidade nas Américas, o planeta Terra há 20 mil anos atrás, as Américas a partir do Rio Grande do Sul. Exploramos o tema do surgimento da humanidade na África e a grande migração pelo planeta, até a transposição do gelo do Hemisfério Norte por onde grupos sapiens chegaram às Américas, acompanhando bandos de mamíferos gigantes, caçados com instrumentos de rochas lascadas.
De forma lúdica, durante dois meses, pintamos as mãos nas paredes das cavernas, fizemos roupas lembrando o couro dos animais, modelamos pontas de flechas. Representamos a natureza do Rio Grande do Sul e seus diferentes biomas utilizando rochas e materiais orgânicos como plantas, sementes, folhas e fibras. Utilizamos fotografias de especialistas e desenhos das crianças. Do Litoral ao Planalto Meridional, incluindo as várzeas e as corredeiras dos grandes rios Jacuí e Uruguai, os campos, as lagoas e os banhados. Identificamos os primeiros habitantes dessas paisagens e a natureza nativa que puderam desfrutar os construtores de cerritos, os charruas e minuanos, os povos sambaquis, os guaranis e os kaingangs. O resultado material foi ordenado numa pequena exposição, vividamente apreciada pelas turmas, que fizeram fila na porta do protótipo de um museu escolar.
A proposta desenvolvida com as crianças dialoga com a iniciativa criada em 2020, as Práticas em História. Com o apoio da Escola Projeto e de outras instituições parceiras como as organizações não governamentais THEMIS e AKANNI, realizamos oito cursos, numa jornada que mobilizou mais de 250 participantes, ao longo de três anos. Com o conceito de círculo de diálogo virtual promovemos a reflexão crítica analítica sobre a história das Américas, do Brasil e do Rio Grande do Sul. A perspectiva teórica é de ruptura com o modelo colonialista, que centra a história do continente a partir dos invasores europeus. Adotamos um recorte que prioriza a história das mulheres e crianças, dos subalternos, perseguidos e marginalizados. Uma história para jovens e adultos com interesse em conhecer experiências diversas no longo percurso humano no planeta. Com o retorno aos eventos presenciais, achamos chegada a hora de incluir as crianças na proposta.
Com a experiência acumulada, propusemos um desafio ainda maior para este ano na oficina com as crianças (3): tratar a história da Terra. Uma experiência única no universo, com 4,6 bilhões de anos. Para aprender brincando, iniciamos exatamente pelos dinossauros. Esses lagartos terríveis que povoam a imaginação humana e que cresceram a tamanhos gigantescos, ao longo dos 180 milhões de anos em que percorreram a Pangeia, acompanhando a separação dos continentes, durante o Mesozoico. Como proposta didática, tratamos também dos animais atuais, com brinquedos e ilustrações, com atenção especialmente para aqueles que compartilham características dos dinossauros como os répteis e as aves. Comparamos bicos, cascos, patas, penas… Situamos a bicharada atual nos continentes de origem e, assim, vamos nos familiarizando com os mapas do globo terrestre, do Brasil e do Rio Grande do Sul. Aproveitamos o fato de termos no Sul do Brasil registros fósseis sobre a existência dos mais antigos dinossauros, que viveram durante o Triássico, para destacar as descobertas de cientistas locais e valorizar pesquisadores argentinos, que possuem longa trajetória de estudos e descobertas desses animais fascinantes.
A noção de que habitamos um planeta frágil, que já foi terrivelmente quente e quase totalmente congelado, que abrigou espécies que foram extintas, por mudanças climáticas internas ou episódios externos, como a queda de meteoros, vai criando responsabilidade com a dádiva que desfrutamos em nossa efêmera existência. E, ainda, mostrando que os humanos não são os donos do planeta. Como destacam os povos originários do Brasil, somos habitantes de uma natureza que não nos pertence. Os nossos antepassados hominídeos surgiram há apenas oito milhões de anos atrás. Pertencemos a uma espécie muito jovem no planeta, porém com capacidade destrutiva inigualável. As transformações promovidas por humanos nos últimos 500 anos põem em risco a própria existência da vida no planeta Terra.
A geração que hoje se encanta com os dinossauros, que tem acesso à divulgação científica atualizada, que tem a possibilidade de crescer com conhecimentos inimagináveis para seus antepassados, será convocada a enfrentar as maiores tragédias ambientais do mundo contemporâneo. O planeta precisará ser regenerado para que a vida humana e das espécies animais e vegetais possam continuar a existir. Já atingimos níveis alarmantes de extinções causadas pela humanidade. A enchente que enfrentamos agora acende todos os sinais de alerta sobre os danos que têm sido produzidos por uma exploração econômica predatória, inconsequente e gananciosa dos recursos naturais. Temas complexos. Assuntos delicados que precisam ser tratados de forma adequada com os pequenos humanos que herdarão um mundo em drástica transformação. Precisamos preparar as crianças que terão pela frente o desafio de manter o planeta habitável e com a vida exuberante formada ao longo de bilhões de anos.
(1) Historiadora e doutora em ciências sociais.
(2) Pedagoga e psicopedagoga.
(3) A oficina “Práticas em história” tem acontecido às segundas pela manhã, na Projeto, e é aberta a crianças da escola e de fora. Saiba no botão abaixo:
Fotos Fábio Alt – @fabiopalt