Kaya Rodrigues (*) / Novembro de 2019
Este texto também poderia se chamar “o privilégio da ingenuidade”, mas vamos por partes.
No calendário brasileiro desde 2003, o Dia da Consciência Negra ainda gera polêmica. É comum surgirem perguntas como “não seria melhor comemorar o dia da consciência humana?”, nas redes sociais, em algumas salas de aula, na roda de amigos e até mesmo em almoços familiares. Revelando ainda haver pouco entendimento sobre a data pela população brasileira. É, obviamente, necessário enquanto seres humanos tomarmos consciência. Isso em nada invalida a necessidade de refletirmos e conscientizarmos origens específicas.
No Brasil, vivemos em uma sociedade muito diversa culturalmente. Nossas origens ancestrais, além dos nossos povos originários indígenas, recebem contribuição de diversas partes do globo. Somos formados por italianos, alemães, portugueses, espanhóis, sudaneses, bantus… e muitos outros povos. Nossa estrutura social, entretanto, faz com que saibamos mais sobre a cultura advinda da Europa do que das demais partes.
Lembro que na minha infância visitei várias casas de amigas e amigos que tinham o brasão de suas famílias de origem europeia ostentados em algum cômodo. Me chamava muito à atenção o orgulho que tinham de suas raízes, mas mais ainda me chamava à atenção que conhecessem essas origens. Eu achava bonito que pudessem ter a compreensão exata de onde vinham, de poder saber as particularidades que formavam suas famílias. Achava bonito sem entender o porquê de eu saber tão pouco das origens da minha própria família.
Conscientizar a presença negra no Brasil é justamente pensar sobre o porquê de algumas famílias não saberem suas origens, é lembrar que casais, mães, pais e filhos foram trazidos para cá e separados, é compreender que povos foram divididos por medo de que pudessem organizar rebeliões, e, dessa forma, impedidos de celebrar suas origens e se orgulhar delas.
É aparente, sendo assim, a existência de um sistema que, desde o império, torna invisível a história negra. Para manter a estrutura escravocrata, era importante que pessoas negras fossem desumanizadas aos olhos das pessoas brancas, para que elas as pudessem comprar como objetos. Da mesma forma, era importante fazer com que as pessoas negras esquecessem ou desconhecessem suas ricas narrativas africanas para que elas também se vissem como “não humanas”. Uma crença que está na base da constituição e perpetuação do racismo no nosso país.
Ressalto aqui que dos 430 anos da inserção do povo negro no Brasil apenas 130 destes se deram em liberdade. A escravização de pessoas negras no Brasil durou mais de 300 anos e foi uma das mais duras do mundo. A trajetória da mulher e do homem negro livres no Brasil é, assim, recente. Mais recente ainda é a ideia desses mesmos homens e mulheres como cidadãos.
Dessa maneira, frases como “não seria melhor dia da consciência humana?” mostram a ingenuidade do povo brasileiro que infelizmente desconhece sua trajetória. Deveríamos ser um único povo, mas de fato sempre fomos classificados e separados em toda nossa história. Evidenciar isso é colocar luz em uma ferida social para que ela possa ser curada. Não pensar sobre isso é fingir que já chegamos na utopia que gostaríamos de alcançar, a da igualdade racial. Mas ainda estamos distantes. Se faz necessário observar como ainda copiamos uma antiquada estrutura que classifica e traz julgamento de valor ou importância a partir da cor da pele. Só assim poderemos mudar esse quadro.
Ver por esse prisma não é excluir, mas sim expandir nossa visão. A história afro-brasileira faz parte da história do Brasil. O dia da consciência negra é uma oportunidade de aprofundar nosso conhecimento sobre nossas origens, sobre a riqueza cultural trazida por diversos povos africanos, e é também um espaço de repensarmos nossas estruturas sociais limitadoras para que se possa buscar uma sociedade justa para toda a população brasileira.
Nesse dia da Consciência Negra vamos refletir? A ingenuidade, por mais bonita que possa parecer, tem o cruel poder de perpetuar o status quo, mesmo sem a intenção. Precisamos deixar de ser ingênuos sobre questões raciais e isso é urgente.
(*) Kaya é tia dos alunos Lukas (turma 31) e Miguel (turma 42), além de artista e performer, formada pela UFRGS, e especialista em Pedagogia da Arte pela mesma universidade. Atua no teatro, no cinema e em pesquisa da cultura popular.