Gerson Smiech Pinho (*)
Na sociedade medieval, a educação das crianças costumava acontecer em meio à convivência direta com os mais velhos. Assim que uma criança conquistava um mínimo de autonomia em relação a sua mãe ou sua ama, passava a integrar a sociedade dos adultos, transitando pelos mesmos espaços que eles e participando dos seus jogos e trabalhos. A transmissão dos valores e conhecimentos se dava prioritariamente neste ambiente coletivo, de convívio amplo entre todas as idades. O aprendizado acontecia através de contato direto com os mais velhos, enquanto a criança partilhava dos afazeres cotidianos. No clássico livro “História social da criança e da família” (Zahar, 1981), o historiador Philippe Ariès situa na modernidade o surgimento da escola tal como a conhecemos hoje. Seu aparecimento foi contemporâneo ao estabelecimento da família como espaço privado, organizada em torno dos laços afetivos entre os cônjuges e destes com os filhos. Na medida em que o grupo familiar passou a se limitar aos pais e seus rebentos, distanciando-se da família extensa característica da sociabilidade medieval, a escola tornou-se um espaço central para a transmissão da cultura, mais além das paredes que circunscrevem a intimidade doméstica.
Recordar o modo como surgiu a escola, com seu papel de passagem entre a família e o campo social mais amplo, permite situar elementos importantes para refletir a respeito da proposta de regulamentação do homeschooling, já aprovada na Câmara dos Deputados e que tramita pelo Senado Federal. Um dos argumentos dos defensores da proposta está no reconhecimento da autonomia que pais e mães têm para definir o que é mais satisfatório e adequado para a educação de seus filhos. A esse respeito, pode-se considerar que tal liberdade já é contemplada pela escolha entre a grande variedade de escolas existentes. Em meio a um amplo leque, que inclui diferentes formas de ensino e de convívio entre os alunos, as famílias podem optar pelo estilo de escola que mais se aproxima de suas expectativas e anseios. Evidentemente, essa aproximação nunca será total ou absoluta. Alguma distância sempre há de existir. Aliás, este talvez seja um dos pontos mais cruciais na discussão sobre o ensino domiciliar – a diferença entre a vivência familiar e a escolar tem uma importante função para a constituição das crianças e dos jovens como sujeitos.
A riqueza viabilizada pela pluralidade do pensamento e por maneiras distintas de se relacionar com a vida permite experimentar a diversidade dos modos de pensar e existir oferecidos por uma cultura. Caso essa experiência não aconteça, fica-se submetido à uma forma unívoca de leitura do mundo, o que exclui o combustível necessário para o pensamento e para a reflexão. Cria-se um achatamento da compreensão, simplificador de diferentes possíveis concepções de mundo, que exclui de antemão o que se quer negar e que aceita somente o que se quer como realidade. Restringem-se, assim, as condições necessárias para a dúvida, a pergunta e o equívoco.
Para considerar o termo “educação” em seu sentido amplo, transcendendo a simples aquisição de conhecimentos ou habilidades, torna-se necessário levar em conta que o ato educativo implica um sujeito em constituição, assim como sua inscrição na cultura e no laço social. Desse modo, deparar-se com divergências e descontinuidades em relação ao estilo e os pontos de vista presentes no núcleo familiar tem um papel indispensável. Tanto a complexidade do pensamento, quanto a mobilidade e a flexibilidade de ideias só se tornam possíveis com base nessa disparidade. Nos tempos atuais, opiniões facilmente aderem a propostas totalizantes e unívocas, sem brechas para o questionamento. Nesse sentido, subtrair o espaço escolar situa-se na direção do apagamento das diferenças constitutivas dos âmbitos social e cultural.
(*) Pai de ex-alunas da Projeto, Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.