Celso Gutfreind (** )
“Permítaseme una indiscreción:? Cómo puedo interpretar un juego si yo no juego?
Es allí, en el mismo terror de mi soledad, de onde surge lo más vital y lo más intenso en mi vida.”
Eduardo Pavlovsky
Um amigo escritor(1) publicou uma novela sobre bullying e outras violências escolares, incluindo o tema do excesso nas redes sociais. É um escritor de mão cheia e ótimo fabulador. A novela foi adotada por uma escola interessada na boa causa da literatura e seus ótimos efeitos. Mas a escola, que é merecidamente bem reputada, encontrou dificuldades com os pais dos alunos.
Os pais dos alunos, com as melhores intenções parentais, acharam o conteúdo do texto pesado e a forma de sua expressão, violenta. Esboçou-se uma censura às palavras do meu amigo. Censurar, aliás, anda em pauta e aqui parece misturar-se com os ideais malogrados. Convém lembrar que censuras atentam externamente contra a saúde da democracia e, internamente, a favor das neuroses. A liberdade costuma ser mais difícil e mais saudável (2).
Quanto aos alunos, todos do ensino médio, quando alertados sobre o teor supostamente terrível do que estavam lendo, riram muito das reações de seus próprios pais. Referiam-se à novela como uma “novelinha”, não pela qualidade estética, que eles consideraram elevada – a escola sempre procurou sensibilizá-los para as artes -, mas pelo conteúdo, o qual acharam demasiadamente leve.
Lembrei-me de quando o psicanalista Bruno Bettelheim (1976) publicou o clássico A Psicanálise dos Contos de Fada, um estudo sobre a importância das histórias infantis na vida emocional das crianças e encontrou as mesmas resistências em pais e educadores. Foi preciso aguardar alguns anos para que o livro encontrasse o seu merecido lugar ao sol de ser lido.
Pouco tempo depois, outra psicanalista, a Maud Mannoni (1979), assegurou que as cenas de violência das fantasias que ocorrem dentro da cabeça de uma criança superam qualquer roteiro prévio de contos de fada, incluindo lobos engolindo moças, gigantes devorando moços, bruxas comendo criancinhas.
Quanto às narrativas atuais, independentemente de seu veículo, elas seguem pondo em cena conteúdos necessários, como a oferta de representações para os nossos não ditos. Precisamos dizer o não dito: “A partir do momento em que algo foi falado, não se regredirá jamais a isso”. (Dolto, 2018, p.27).
Precisamos brincar com o arcaico. Para isto, nós criamos e analisamos. E basta apontar os olhos a qualquer filme de aventura ou série do Netflix para concluir que, em relação a eles, as narrativas escritas andam até brandas demais. A nossa vida arcaica e primitiva, essa que analiticamente vasculhamos nas crianças e nos adultos, comparece em diversas telas, com direito a cenas mirabolantes e efeitos especiais ou simples. Já há consenso teórico e clínico de que precisamos disso para viver melhor.
A brandura de uma história imaculada não interessa a ninguém, a não ser à inútil fantasia dos pais de que podem gerar filhos inocentes, privados de sexualidade e violência de pequenos atos ou grandes pensamentos. E, assim, viver em uma espécie de bolha, realizando o desejo narcísico desses pais (Freud), produzindo o que a nossa hipótese inicial chamou de uma nova infância. Elevados teores de narcisismo marcam o ambiente dessa suposta nova infância, comprometem o futuro do planeta e demandam narrativas cada vez mais contundentes para nos depurarmos e alcançar alguma sobrevivência pessoal ou planetária.
Isso é impossível de fazer cruamente na vida, em se tratando do gênero humano e seu mundo mental repleto de dores, tristezas, ambivalências, efemeridades em busca de serem ditas. Então, a arte precisa existir e ser eficaz na representação da sexualidade e da violência – do amor, da ternura e de todo o resto – para que nos ajude, desde a infância, a elaborarmos os temas humanos, incluindo a morte, e vivê-los da melhor forma possível.
A nossa salvação não parece estar no ideal ou na utopia. Ela parece a simples complexidade de poder dizer: “Se falarmos como pudermos, / seremos o que quisermos” (3). A nossa salvação é o símbolo que, ao contrário da repetição, é sempre novo. Por isso, a arte e a psicanálise são valiosas e andam juntas para se candidatarem a nos salvar onde é possível.
Os alunos leram a novela. Os pais daquela escola puderam rever, nem que em parte, os seus conceitos, em meio a seus sentimentos. O meu amigo, também. Sempre mirando a importância da imaginação para o desafio de enfrentar a realidade, ele agora promete uma novela com muito mais sexo e sangue a fim de que as suas narrativas sejam ainda melhores para a nossa saúde.
(*) Do livro “A nova infância em análise” (págs. 131 a 133), Ed. Artmed, 2022. Segue o link para a página do autor no site da editora: https://loja.grupoa.com.br/pesquisa?t=celso+gutfreind
(**) Pai de ex-aluna da escola, psicanalista e escritor, Celso é um colaborador muito especial deste blog, nos permitindo divulgar textos seus, inéditos ou selecionados de diferentes obras já publicadas. Algumas de suas publicações são A porta do chapéu – crônicas em Paris (Class, 2019), A arte de tratar – por uma psicanálise estética (Artmed, 2018), Tesouro Secundário livro de poemas (Artes e Ecos, 2017), Crônica dos Afetos – a Psicanálise no Cotidiano, Ed. Artmed, 2016, A infância através do espelho – a criança no adulto, a literatura na psicanálise (Artmed, 2014), A Dança das Palavras: Poesia e Narrativa para Pais e Professores (Artes e Ofícios, 2012) e Narrar, ser pai e mãe e outros ensaios sobre a parentalidade (Difel,2010). Celso tem, ainda, vários livros infantis e juvenis publicados, dentre eles: O Caminho do Pintor (2008) e O Boto do Arroto (2013), pela Ed. Projeto, Grilos (2005) e Domingo para sempre e outras histórias sobre nunca mais (2011), pela Ed. Artes e Ofícios, o premiado A menina que morava no sino (Prêmio Açorianos de Literatura Juvenil, 2021, Prêmio AGES, Troféu Carlos Urbim da Academia Riograndense de Letras e Prêmio Cidade de Passo Fundo), e o recém lançado (em pré-venda) Oh, Senhor do Picolé e outros poemas refrescantes, ambos pela Ed. Physalis.
(1) Luís Dill, 100 mil seguidores, Editora Casa 29.
(2) “E talvez a arte tenha um lugar fundamental, no desafio da construção e da transmissão de tais dispositivos discursivos. Não é por acaso, neste sentido, que ela vem sendo vilipendiada pelo discurso da intolerância política e religiosa”. (Rivera, 2020, p.39).
(3) Armindo Trevisan, 1973, p.52.