Cristine Zancani (*)
O contato com o livro infantil faz parte da minha vida. Para falar sobre ele, selecionei quatro momentos – mas poderia selecionar outros tantos, uma vez que tenho a felicidade nada clandestina de viver às voltas com o livro para crianças. Peço licença para contar esse meu era uma vez.
Durante minha infância, eu e minha família moramos alguns anos no Rio de Janeiro. De tempos em tempos, meus avós maternos iam nos visitar e ficavam hospedados em nossa casa. Meu avô Raul (como o Raul da ferrugem azul) me trazia livros de literatura infantil de presente. E todas as noites, criando um momento só nosso, me contava/lia histórias. No aconchego da leitura compartilhada, me encantei pela palavra e associei leitura a afeto.
Cresci, mas a menina que amava ouvir histórias permaneceu em mim. No amor que ela aprendeu pelas palavras, escolhi minha faculdade: Letras. Na faculdade, cursando a cadeira de literatura infantil e juvenil reencontrei alguns dos livros lidos pelo meu avô. Eles não só permaneciam grandes em sentido, como aumentaram de tamanho dentro de mim. Eles aumentaram quando descobri que a literatura infantil possibilitava a realização de infinitas leituras da sociedade/da infância: pelo viés histórico, sociológico ou psicológico, por exemplo. Mas, mais do que isso, os livros para criança ficaram imensos quando entendi que os melhores deles sonhavam/lutavam por transformações sociais. Sonhavam um outro futuro. Em plena ditadura militar e no processo de abertura política, por exemplo, os livros para criança não pouparam críticas ao autoritarismo. Ridicularizando patéticos reizinhos mandões, eles foram um veículo fundamental na luta por liberdade. Os livros infantis também sonharam – e seguem sonhando/lutando – pelo protagonismo feminino, pela representatividade, pelo fim do racismo, pelo respeito às diferenças.
Analisando as produções para a infância, a gente entende o momento que vive e também as sementes que esse momento joga para o futuro. E viva a profusão atual de histórias para ninar garotas rebeldes!
Me formei, segui pelo caminho da pós-graduação e em todo percurso – até concluir o Doutorado – trabalhei em um projeto de formação de leitores na periferia, o Clic (Centro de Literatura Interativa da Comunidade), coordenado pela professora-doutora Vera Aguiar. Ali, reencontrei os livros infantis, dessa vez engajada na formação de leitores e na formação de mediadores de leitura para formar leitores. Ali, vivi a potência da leitura compartilhada em grau máximo. Nada que eu conte aqui dá conta de tudo o que aconteceu nos dez anos em que compartilhei leituras com as crianças da Vila Fátima. A palavra também tem a beleza de faltar em momentos onde é chamada para traduzir certas imensidões.
Depois do Clic, muita água rolou, e segue rolando, na minha vida profissional. Todas as ondas envolvem quase sempre o livro infantil e a formação de leitores. Mas o quarto e último encontro/encanto com o livro vem da minha vida pessoal. Há 11 anos, eu virei mãe. O nome da minha filha voou de dentro de um livro infantil: A fada que tinha ideias. Minha filha se chama Clara (como a Clara Luz). Clara me fez reencontrar a leitura compartilhada que vivi na infância, só que de outra forma. Não sou mais a menina que ouve. Sou quem conta. Sou como a voz do meu avô. Quero ser pra ela um pouco do que a voz do meu avô foi pra mim. Quero ser o aconchego e fazer a leitura virar sinônimo de afeto. Leio pra ela desde que ela era muito pequena. E sigo lendo até hoje e vou seguir enquanto a vida permitir. Das nossas leituras, saem grandes conversas – e a gente vai dialogando com a trama, com as personagens, com as alegrias e com as tristezas que estão na obra. A gente vai se colocando dentro do livro e colocando vários livros dentro da gente. A gente tem crescido carregando todas essas palavras, vozes, ilustrações e histórias. Essas histórias que são sempre sonho/luta de um mundo melhor. Vejo a Clara assumir posições firmes e bonitas no cotidiano. Sei que, muitas delas, vêm de dentro das páginas dos livros.
A Clara Luz da história que inspirou o nome da Clara não queria fazer as mesmas mágicas de sempre, nem queria se sujeitar ao domínio da Rainha das Fadas, que regia tudo por um livro de magias embolorado. Clara Luz queria inventar mágicas próprias porque não gostava de mundo parado. Os livros infantis têm ensinado – recorrentemente – que é necessário e possível mudar o mundo. Aconselho a todos e todas a buscar inspiração e força na literatura, que se diz ‘para crianças’, mas que – na verdade – é para quem sonha, para quem imagina, para quem luta, para quem não se conforma com o mundo quando ele para: tenha a idade que tiver.
(*) Mãe da ex-aluna Clara (5º ano/2020) e doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS.