Amanda Mendonça Rodrigues (*)
Desde que a Lei 10.639/2003 (1) foi concebida, já se passaram quase 22 anos. Mesmo assim, o assunto antirracismo e educação para as relações étnico-raciais foi consideravelmente deixado de lado por uma significativa fatia dos responsáveis pela educação no Brasil. Outra fatia, porém, forte, insistente e teimosa, como educadores e educadoras que fazem parte do Movimento Negro, ou simpatizantes, levaram adiante esse projeto como uma forma de aliviar as histórias, aquelas contadas sempre do mesmo lado – o branco –, e marcaram presença na missão de formar uma sociedade mais justa e igualitária. O fato é que muitas das pessoas que não realizam esse trabalho alegam que não há formação que dê conta desse “novo” conteúdo que deve ser trabalhado em todo o currículo. Vejo, no entanto, dois focos de formação, que devem existir simultaneamente: 1) cabe à escola movimentar esse assunto e fomentar o currículo, para que ele possa ter cada vez mais outras cores, de preferência mais escuras; e 2) cabe ao docente buscar seu letramento racial para compreender quais são seus privilégios (ou a falta deles) de acordo com sua cor.
Aqui na Projeto, a Educação para as Relações Étnico-Raciais (ERER) tem tido atenção há alguns anos, especialmente no Ensino Fundamental. Percebo que há uma certa forma desse assunto atravessar as professoras e professores que acompanho como colegas ou em trabalhos externos de formação. Primeiro, acontece a tomada de consciência de si próprio. Geralmente, as docentes e os docentes começam com questões sobre o seu próprio lugar na sociedade que habitam. Não é raro esse movimento estar atrelado a educadores/as negros/as, ao se darem conta de que muitas de suas experiências podem ter sido racializadas, dentro e fora da escola (como aluno/a ou como professor/a). Utilizo aqui o termo “racializado” para explicar as experiências e vivências que podem ser explicadas pela cor da pele do sujeito e/ou seus traços, relacionados à negritude ou não.
Em um segundo momento, percebo a tentativa de práticas que ocorrem em datas especiais, como as que acontecem no mês em que estamos, o mês da Consciência Negra. Normalmente, essas práticas isoladas, têm um caráter exotizado da população africana, envolvendo, por exemplo, o uso de turbantes e brincadeiras africanas (geralmente aquelas em que brincam na rua, sem uso de brinquedos estruturados). Sim, de fato essa imagem de África existe, porém, ela não é única e, como já dizia a Chimamanda (2), há perigos em contar uma história única. Além disso, deixar para trabalhar com esse tema somente em novembro traz um outro problema, que todas as escolas precisam resolver. De um lado, o final de ano e o pouco tempo para apresentar as camadas complexas e profundas de luta, arte, literatura e ciência em que a população africana e africana em diáspora contém no seu legado. De outro, a falta de repertório de muitos docentes. Aqui, nos damos conta de que a nossa sociedade empodera, desde muito cedo, a chegada de diferentes imigrantes. Dessa forma, especialmente no estado do Rio Grande do Sul, temos cidades que transpiram a cultura e os valores dos imigrantes europeus. Então, cada pulinho na Serra ou no Litoral, que fazemos durante o ano ou nas férias ao longo de toda uma vida, alimenta de forma significativa o nosso repertório das narrativas brancas. O que sobra para a narrativa negra? Ela só “aparece” com uma busca profunda e constante. Não que essa cultura, rica e extremamente importante para o nosso estado, não esteja aí. Ela está. Oliveira Silveira, Pâmela Amaro, Giba Giba, Ronald Augusto, Lupicínio Rodrigues, Dona Iara Deodoro e mais um extenso reinado negro que o digam. Contudo, ocorre a tentativa de apagamento desses saberes afro-diaspóricos através da não valorização de atos e produções grandiosas dessas majestades.
Dia desses conversava com as crianças da minha turma sobre um fato ocorrido com Lupicínio Rodrigues, que descobriu que sua música Se Acaso Você Chegasse fez parte da trilha sonora do filme “Lady, let’s dance”, que concorreu ao Oscar no ano de 1945, sem que ele tenha sido creditado pela composição da música. Esse acontecimento é só um exemplo das tentativas (muitas delas efetivas) de apagamento que a população negra sofreu e sofre nos dias de hoje. Resultado: práticas rasas e exotizadoras, que podem deixar a população negra na periferia do saber.
O terceiro momento do processo formativo dos(as) docentes, que pode ser a “virada de chave”, é um projeto específico sobre a cultura afro-diaspórica, qualquer que seja seu assunto. Professores(as) e instituições que conseguiram cravar essa temática no currículo foram presenteados(as) com o tempo e o repertório. São semanas transformadoras para as crianças e para os(as) professores(as). É através desse tipo de projeto que respostas são formuladas e perguntas surgem. É através de cada projeto inserido no currículo que esses sujeitos se enraízam com uma cultura que pulsa em todo o Brasil. Comigo não foi diferente. Quando montei e passei pelo projeto que faz parte do 3º ano da nossa escola, Uma Porto Alegre Quilombola: estudo sobre o crescimento urbano de Porto Alegre através dos Territórios Negros, entendi parte da minha história. Entendi os motivos de ter vindo da periferia de Porto Alegre, ainda que uma parte dessa família tenha sido moradora de locais próximos ao centro, como a Ilhota e o Areal da Baronesa, hoje Quilombo do Areal. Dessa forma adquiri repertório como sujeito de direitos dessa cidade e como docente. Pronta para contar para o mundo o que de fato aconteceu.
Há, por último, e mais difícil de alcançar, a transformação das Educações para as Relações Étnico-Raciais (ERER) de conteúdo curricular ou assunto, para método. Isso significa que o ideal é que as práticas curriculares desse eixo sejam uma forma de ensinar e de aprender, em que diferentes epistemologias sejam trazidas para a sala de aula. Podemos pensar o seguinte, para enegrecer as ideias: se entrarmos em uma sala de aula ou olharmos um planejamento de um(a) professor(a), e conseguirmos identificar a prática de ERER ali, ainda não chegamos nesse ponto. O desejo é que o currículo e as práticas sejam descolonizadas, ou seja, aconteçam de forma constante, duradoura e permanente, para que possam, enfim, ser naturalizadas.
Nessa trajetória como mulher negra, professora, pesquisadora e recente formadora de professores, já ouvi críticas como: “Mas isso não é demais? Não é ‘forçar a barra’ ter um projeto somente com pessoas negras? O ideal não é uma prática naturalizada?” As minhas respostas – por vezes ácidas, mas necessárias – têm girado em torno de explicar que 500 anos de epistemicídio, de assassinato de formas de lidar com o conhecimento, não ocorreram de maneira natural, que os processos escravocratas que construíram nosso país não surgiram a partir das pessoas que ocupavam esse território, portanto, é necessário devolver um lugar que antes lhes foi tomado. É necessário forçar a barra, sim, de preferência aquela que prendeu um monte de gente da mesma cor na senzala. Vivemos em época de retomada, como disse a Mestra Kaingang Iracema Rã-Nga Nascimento. Precisamos retomar os territórios, as narrativas e o currículo.
Enfim, acredito que essa revolução, que só começa aqui e está longe de acabar, não pode ser feita de forma individual. Aquela máxima de que “uma andorinha não faz verão” é verdadeira aqui também. É necessário um compromisso institucional de que essa reparação será feita e de que a lei será cumprida. É necessário que as muitas andorinhas que andam espalhadas por aí, se encontrem. Cabe às instituições escolares reunirem essas andorinhas ou “andorizar” os pássaros que já têm dentro delas.
(*) Professora da Escola Projeto, atualmente com uma turma de 4º ano, Amanda é Pedagoga, especialista em Educação Transformadora e Mestranda em Educação no PPGEdu da PUCRS.
(1) Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) para tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do país. A lei também inclui o Dia da Consciência Negra no calendário escolar.
(2) Chimamanda Ngozi Adichie é uma feminista e escritora nigeriana.