Artur Gomes de Morais (*)
Aos 3 anos e 10 meses, João se vira para a tia e diz:
– Tia Gigi, “cor” combina com “cocô”, não é?
Um mês depois, ele repete o comentário para o pai, que concorda com João e lhe responde:
– “É, filho! “Cor” rima com “cocô”. E pergunta ao filho: – E “xixi”, rima com o quê?
João pensa e lhe responde:
– Com “chinês”!
Para que todas as crianças tenham uma prazerosa curiosidade sobre as palavras, tal como João demonstrou, tão cedo e de modo espontâneo, pensamos que a escola é um espaço privilegiado, principalmente no final da Educação Infantil. Como hoje sabemos, brincar com as palavras, refletir sobre rimas e sobre as repetições de sons em palavras diferentes, são uma vivência muito importante para alguém refinar seu senso estético, gostar mais e mais de música e de poesia e, não menos importante, avançar na compreensão de como nossa escrita alfabética funciona e no aprendizado de como letras e sons se combinam.
Durante três dias do último mês tive a oportunidade de partilhar essas ideias com colegas de Porto Alegre, num encontro de três noites, organizado pela Projeto, pela PUC e por duas outras escolas – João XXIII e Rosário – que também pensam que é possível educar nossas crianças de modo mais respeitoso e produtivo. Conversamos sobre o que defendo em meu recente livro Consciência Fonológica na Educação Infantil e no Ciclo de Alfabetização (Ed. Autêntica, 2019) e que se opõe, radicalmente, aos métodos fônicos que o atual desgoverno federal quer impor a todas as escolas do país.
Sim, para aprender a ler e a escrever, essas complexas tarefas que depois serão realizadas sem dificuldade, toda criança com audição normal precisa observar que a palavra “janela” é maior que a palavra “casa”. Ela também precisa ter consciência de que “papai” e “pato” começam com um pedaço sonoro parecido – e por isso se escrevem igual no início -, mesmo que “papai” não tenha nada de “pato” ou de “pateta”. Como a “lógica” do alfabeto é mais complicada que nossa vã filosofia imagina, noss@ aprendiz também vai ter que descobrir várias outras coisas. Por exemplo, que P, p, P e p são a mesma letra; que p, b, q e d, apesar de terem o mesmo formato, são letras bem diferentes e que, embora só abramos a boca três vezes para dizer [pi] [pO] [ka], não colocamos somente três letras, mas seis, ao escrever o nome daquela gostosura!
Brincando com as palavras, deleitando-se com trava-línguas, cantigas e parlendas, nossas crianças podem ter muito prazer, enquanto as ajudamos a compreender a escrita e a desvendar as convenções das relações entre sonzinhos e grafias. Tudo isso merece ser feito e o espírito lúdico e de liberdade que desperta nos obriga a lutar contra as intenções autoritárias que o atual MEC revela ao, delirantemente, querer entronizar o método fônico como salvação da alfabetização em nosso país.
Nada de camisas de força, nada de militarização ou de padronização! É na busca do prazer e no respeito à diversidade que continuaremos nos fazendo mais humanos! De manhã, de tarde, de noite e de madrugada. Na escola, nas ruas e nas praças. Porque “cor” também rima com “amor”.
(*) Professor titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).