Primeiramente, quero falar da minha alegria de estar aqui, de ter sido escolhida. Essa é uma declaração de carinho pela minha obra, pela minha pessoa, e isso me deixa muito feliz! Muito obrigada!
Aproveitando a oportunidade de falar aqui pra vocês, eu trouxe alguns trechos de um livro – Entre textos e afetos (2) -, que é um resumo das minhas palestras, feitas especialmente pelo Nordeste, ao longo dos últimos 10 anos, em que eu falava sobre a formação do leitor, a importância da contação de histórias, a importância do livro como elemento formador de sensibilidades e de humanidades… As pessoas sempre me pediam algo escrito e eu escrevia, tipo apostilas, até que eu resolvi fazer este livro. E, quando eu digo “Entre textos e afetos”, eu mostro o meu jeito de atuar no mundo, como uma conversa amorosa.
Então, eu vou ler pra vocês a página 25, que diz:
“Por que é tão importante ler para os pequenos?
Esta pergunta provoca muitas reflexões. É importante ler para os pequenos para que entendam mais sobre a escola, sobre a vida, sobre nós (o coletivo) e sobre eles mesmos (o individual). Para que fiquem bem pertinho da gente e sintam a leitura como um abraço quentinho. Para que se tornem pessoas críticas e desde pequenininhos possam dizer as palavras SIM ou NÃO e saber explicar o porquê de sua escolha.
Lemos para os pequenos para provocar e desenvolver neles o gosto pela leitura, estimulando assim a sua criatividade – e também para que fiquem íntimos das palavras podendo usar a abusar delas em qualquer contexto. É uma forma de fortalecer a amizade com a palavra escrita, o que facilitará sua comunicação com as pessoas ao longo de sua vida. Lemos para que não tenham medo de se colocar no mundo, construindo a sua própria maneira de dizer e de se anunciar; para que vivenciem através de sua imaginação muitas outras experiências que só a história contada de um bom livro de literatura pode provocar.
É importante ler para os pequenos para deixar aflorar o seu sensível e então aprenderem a respeitar as tantas diferenças e diversidades que encontrarão em seus caminhos ao longo dos dias, dos meses, dos anos, da vida. Lemos para os pequenos para que percebam desde cedo que a leitura de livros de literatura faz uma grande diferença na vida das pessoas de qualquer idade.
Por fim, lemos para os pequenos porque, dentre outras coisas, desejamos que nos tomem como exemplos de leitores nesta provocação de ler, ler, ler, ler… Ler a vida inteira”. (Págs. 25 e 26)
Também teria essa outra parte sobre “Como é possível despertar essa paixão pela palavra nos pequeninos”, onde eu digo que é realmente possível despertar essa paixão!
“E isso pode acontecer de maneira bem natural e espontânea. Os bebês precisam ouvir alguém conversando e cantando sempre com eles. Isso os deixam tranquilos e felizes O ritmo das palavras e canções embala os pequenos. São as músicas ditas infantis, as cantigas de ninar, cantigas de trabalho, cantigas de roda, os provérbios, os brinquedos cantados, os trava-línguas, as adivinhações a até as músicas inventadas pelas mães, pais ou pessoas próximas ao bebê. Todas essas experiências tão afetivas podem despertar e acelerar a paixão pela palavra. Muitas cantigas são sussurradas ao pé do berço e algumas outras, mais expansivas, são cantadas com palmas e batidas de pé. As brincadeiras com as adivinhações, com as trovas e com os versinhos rimados, tão presentes no cotidiano dos pequenos, nas casas, nas escolas ou até mesmo nas ruas, são fundamentais para aumentar essa paixão” (…) (Pág. 27)
Assim, eu marco nesse livro o que eu costumo falar, que a leitura alimenta as ideias. E ainda vou muito pela linha da contação de histórias, dizendo que “quem conta história, abraça”, porque contar histórias é um ato de amor.
E, finalmente, nesta “manhã de cinzas”, que eu desejo que seja uma “manhã de rosas”, eu vou ler pra vocês uma parte deste meu outro livro, que é Os tesouros de Monifa (3), que eu fiz porque fui convidada pela Fundação Palmares, em 2004. Meu filho Rui, que tinha 8 anos, foi o 1º leitor e gostou, perguntando se era de verdade. Mas é uma história inventada, de uma menina que tinha uma tataravó africana que deixa uma carta contando as coisas que aconteciam com ela na época que era escravizada. E ela é “Monifa” porque ela tem sorte: aprendeu a ler e escrever. A menina faz aniversário – eu adoro fazer aniversário! – e ganha de presente esse baú com as coisas de Monifa, que ela deixou para a geração futura. E a primeira coisa que ela tinha que fazer era ler a carta. Vou ler essa carta, então, pra vocês e mostrar esta imagem (pág. 26). É uma imagem amorosa, que mostra uma mãe penteando o cabelo da filha. Eu fui uma criança de trança, até meus 11 anos, e meu cabelo era muito cheio. Minha mãe e minha tia me contavam as histórias. Então a Rosinha, que ilustrou essa história, representou esse momento de amor, que é a hora de pentear o cabelo. E eu vou ler a carta pra terminar minha apresentação. Todo o mundo sabe que trabalho com a temática negro-afetiva – é a temática dos meus livros. Sou, inclusive, mestre nessa área. Vamos à carta, então!
“Para os meus filhos e os filhos dos meus filhos!!!
As raízes de vocês estão na minha África. Por isso, devem amar esse lugar com toda a força do amor que mora no fundo do coração de vocês. É lá que me encontrarão e a toda nossa gente.
Desejo que sejam livres de corpo e alma e que, em sua vida, sejam tratados por todos com dignidade e respeito.
Não se esqueçam da nossa história. Não se esqueçam do nosso sofrimento. Mas, principalmente, não se esqueçam da nossa luta. O corpo pode estar preso, amarrado, maltratado, mas as ideias e os pensamentos nunca se escravizam. É isso que faz a diferença! Nesses tempos duros em que a tristeza, às vezes, não nos permite nem levantar da cama, a imaginação é o atalho para aquietar o coração… Nessas horas fecho os olhos bem fechados e visito minhas saudades… Encontro minhas pessoas queridas, que ficaram pelo caminho, e chego aos lugares da minha infância… Sinto o cheiro do vento e a temperatura do chão acariciando meus pés… Estar sempre em contato com minhas raízes me fortalece e é também uma maneira de não me perder na minha história, isto é, não me perder de mim mesma…
Tomara que todos vocês saibam ler e escrever. Mesmo eu, com todo o sacrifício, aprendi. Foram os meus senhores que me ensinaram a usar esta língua estranha. Quando cheguei aqui já sabia ler e escrever a língua da minha terra, mas precisei usar a deles… Escrever é uma maneira de se anunciar ao mundo e de se sentir mais gente. É também uma forma de não enlouquecer, de suportar… Por isso, esses escritos para mim valem mais do que ouro. Eles valem toda uma vida. Valem a minha vida! Cuidem deles. Não os deixem morrer junto com o tempo… Contem e recontem as histórias que guardei aqui. Muitas delas ouvi pequenininha, lá na minha terra. São minhas, são suas, são nossas. Todos nós somos responsáveis pelas nossas histórias e pela continuação das nossas tradições.
Desejo que as minhas esperanças renovem as de vocês e que os meus sonhos se multipliquem junto aos seus… Desejo também que o amanhecer de cada dia seja uma possibilidade de um dia melhor para todas as pessoas que vivem neste mundo!
Torço pela Paz e pelo Respeito entre os homens de todas as cores.
Que os deuses os abençoem sempre!!!
Monita” (Págs 20 e 21)
Essa carta praticamente foi soprada ao meu ouvido e, depois, eu criei o seu contexto. E foi dessa história que eu cheguei a Esperança Garcia. Dessa história inventada eu cheguei a uma história que aconteceu de verdade (4).
Para finalizar, gostaria de dizer pra vocês da minha alegria e do quanto o ingrediente da literatura numa escola, como formação dos meninos e meninas, é poderoso em relação aos homens e mulheres que irão se tornar. Que a gente possa fazer isso com muito amor e muito carinho, acreditando e gostando dos textos. É importante que a criança tenha essa referência de que o adulto que lhe oferece o livro é alguém que gosta do que está ali e que gosta do que as palavras e os livros têm para nos contar e nos dizer de experiências, naturalmente ampliando as nossas próprias, de modo que possamos fazer essa viagem fantástica a que alguém nos convida.
(1) Transcrição de Beth Baldi, a partir da gravação que registrou a participação da autora no 1º dia do Seminário – 17/2/2021, quarta-feira – com a equipe pedagógica da escola.
(2) Entre textos e afetos: formando leitores dentro e fora da escola, Ed. Malê, 2017.
(3) Ed. Brinque-book, 2009.
(4) Referência a seu livro Quando a escrava Esperança Garcia escreveu uma carta, Ed. Pallas, 2012.