Conheça o texto do professor Luís Augusto Fischer, que também é pai na escola, com o qual abrimos o encontro de professores deste ano de 2016, na segunda, dia 15/2.
Além de nos inspirar com seus depoimentos sobre o que é ser professor (aliás, isso acontece ao longo de todo o livro de onde o texto foi retirado: Filosofia mínima – ler, escrever, ensinar e aprender, 2012, Ed. Arquipélago) – “professor é alguém que vive intensamente qualquer momento profissional”, “ser professor (…) é um troço sensacional, que não deixa a gente ficar velho” -, Fischer dimensiona um dos grandes desafios da profissão, quando reflete sobre a questão do coletivo e do individual na sala de aula: “(…) a aparente generalidade que uma sala de aula vive, com todos os alunos sentados ali como que à disposição do professor, é isso mesmo, apenas uma aparente generalidade. Ou melhor: ela só funciona assim, numa generalidade, em momentos, nunca o tempo todo, porque ela é uma generalidade precária, sempre sujeita a deixar de sê-lo e converter-se em uma coleção de individualidades ou uma agrupação aleatória de interesses. Quem dá aulas (…) precisa perceber essa dinâmica entre o indivíduo e o coletivo. De vez em quando, não tem mesmo como os alunos aceitarem a generalidade, porque entra em causa a particularidade irrenunciável de cada um.”
Leia abaixo o texto na íntegra:
REPETIR A INFORMAÇÃO (*)
Luís Augusto Fischer (professor de Literatura da UFRGS, escritor e pai do Benjamim e da Dora)
Meu leitor já deve estar cansado de saber que eu sou professor, já há bastante tempo, e que isso para mim é mais que profissão. Diria mesmo que é a minha identidade, sem cometer qualquer exagero. Acresce que meu pai foi professor também, e tenho uma penca de primos e alguns tios igualmente professores, de forma que esse negócio é, por assim dizer, uma especialidade da família.
Não quer dizer que eu seja um bom professor só pelo fato de ter esse currículo familiar, e bem pode ser que não o seja, e é certo, certíssimo, que não sou um bom professor o tempo todo. Certo, ninguém pode ser eficiente, ótimo, em qualquer metiê, durante todo o tempo; mas isso, no magistério, tem peso específico. Como explicar, para quem não é do meio?
Professor é alguém que vive intensamente qualquer momento profissional; é como se a gente precisasse dar o nosso máximo o tempo todo, para não deixar a peteca cair, para não perder a atenção dos alunos, de todo e qualquer aluno, para poder vencer o programa, para não perder o fio do raciocínio em uma exposição, por tudo isso e mais alguma coisa. Qualquer problema em qualquer desses campos dá uma angústia na gente.
Certo, eu sei que há várias profissões em que o cara tem que atuar o tempo todo a cem por cento, caso contrário pode haver horrores; tal é o caso de um cirurgião, por exemplo. Vendo a coisa por esse lado, ser professor é até algo ameno, porque de fato a gente pode errar e recuperar o erro ali adiante, na próxima aula. Mas nem essa possibilidade atenua a sensação ruim quando a gente perde algum daqueles fios.
Ser professor, eu não sei se já disse aqui, diante do prezado leitor, é um troço sensacional, que não deixa a gente ficar velho. Isso me disse um sábio já citado aqui antes, meu amigo Paulo Coimbra Guedes; eu começando a dar aulas, em 1980, e ele meu chefe, uma vez pedi conversa com ele sobre nem lembro mais o quê; e o que eu queria mesmo era compartilhar com ele o gosto de estar dando aulas — e foi aí que ele, mais velho que eu, me disse: “No magistério, ou o cara entra velho, ou nunca mais fica velho”. Bingo.
Tudo isso vem aqui a propósito de contar um episódio que vivi como professor. Um episódio frustrante, daqueles que fazem a gente chegar em casa com a sensação de ter feito um troço muito errado, na aula. Era assim: uma turma de penúltimo ano do colégio, fim do último período, naquela hora em que os alunos já estão ajeitando as coisas na pasta, já cheirando a saída, com fome, com vontade de bater papo, enfim tudo, menos permanecer na sala de aula. Eu tinha meus 25 ou 28 anos, por aí, professor relativamente jovem ainda. E pedi a atenção de todos para um aviso: eles me olharam, todos, e eu lembrei que na aula seguinte haveria uma prova (ou algo assim) e seria necessário trazer para a aula algum material, digamos o dicionário. Disse e já me preparei para também sair, porque o sinal ia tocar a qualquer instante.
Mas ocorreu que um aluno lá do fundo da aula levantou o braço e meio gritando perguntou o que era mesmo que ia haver na próxima aula. Eu fiquei meio brabo, mas pedi novo silêncio geral (o sinal ainda não tinha batido) e mais uma vez expliquei tudo de novo, pacienciosamente, e ainda lembrando que a combinação já tinha sido feita vários dias antes. Termino de falar e, para meu desgosto, um aluno cá do outro canto da sala me pergunta de novo o que ia haver na aula seguinte. Aí eu fiquei puto. Ele por acaso não teria ouvido as duas vezes em que expliquei exatamente aquilo?
Não me aguentei e perguntei a ele onde é que ele estava segundos antes, quando eu tinha explicado tudo, duas vezes inteiras. Ele não respondeu a essa pergunta, e eu voltei a perguntar, irritado mas ainda educado, se ele não tinha me ouvido falar para o colega lá do fundo. Não tinha? Aí ele me deu uma resposta desconcertante: “Mas não era eu que tinha perguntado”. O quê? Como assim?
Bem assim, como eu demorei para entender. É que a aparente generalidade que uma sala de aula vive, com todos os alunos sentados ali como que à disposição do professor, é isso mesmo, apenas uma aparente generalidade. Ou melhor: ela só funciona assim, numa generalidade, em momentos, nunca o tempo todo, porque ela é uma generalidade precária, sempre sujeita a deixar de sê-lo e converter-se em uma coleção de individualidades ou uma agrupação aleatória de interesses. Quem dá aulas expositivas ou de leitura coletiva de texto, como é o meu caso — e, alô pedagogos, eu não abro mão disso —, precisa perceber essa dinâmica entre o indivíduo e o coletivo. De vez em quando, não tem mesmo como os alunos aceitarem a generalidade, porque entra em causa a particularidade irrenunciável de cada um.
Não sei qual era o caso daquele aluno ali, naquela hora, se estava com alguma questão atormentando sua cabeça, se a urgência de sair era maior que a polidez, mas o certo é que ele queria uma explicação pessoal, cara a cara, única, intransferível. E de vez em quando é só essa a comunicação que funciona, no universo generalizado (precário, provisório, mutante) que é a sala de aula.
(*) Texto do livro “FILOSOFIA MÍNIMA – LER, ESCREVER, ENSINAR E APRENDER”, publicado em 2012 pela Ed. Arquipélago.