Cristine Zancani (*)
Acordei sabendo que o dia ia ser especial. Estamos na última semana de novembro, quase em dezembro, quase no fim do ano letivo da Clara, quase no fim do quarto ano. No horizonte, está o quinto ano. O quinto ano é o nosso último ano de Projeto. Esse final de ano, diferente dos demais, vem com esse horizonte finito pela frente. Sabendo disso, qual a melhor forma de viver a escola daqui até lá? Aproveitando ao máximo, infinitando tudo o que for possível. Foi o que fiz hoje, acompanhando a vista das crianças do quarto ano ao Centro Municipal de Cultura, para passar a manhã com a Ana Flávia Baldisserotto, artista estudada esse ano.
Uma das primeiras perguntas que a Ana Flávia fez para as crianças foi se sabiam onde estavam. As respostas foram variadas: planeta terra, universo, museu, atelier, teatro, biblioteca. A Ana pegou o gancho do que foi dito para nos contar a história do Centro Municipal de Cultura e de uma outra Porto Alegre. Uma Porto Alegre que abrigava uma comunidade chamada Ilhota. Uma “pequena ilha” que ficava bem ali onde estávamos. Uma história que foi cruzando vários tempos e várias personagens. Uma história de segregação, de despejo, mas também de resistência. Uma história que a Ana ouviu de uma senhora. Senhora essa que semeou o solo infértil de uma praça. Uma história que a Ana leva em frente – em muitos sentidos –, porque a Ana é uma pessoa interessada em ouvir outras histórias, mas não só isso: é interessada em viver as histórias bonitas que ouve. E em levar essas histórias em frente – para que o maior número de pessoas as ouça/as viva. (1)
Não são só as pessoas que contam histórias para a Ana. A Ana também ouve as histórias contadas pela natureza – mas para ouvir essas histórias, a Ana usa o olhar. Então, ela falou para as crianças sobre a importância do silêncio para contemplação e propôs que elas fossem conhecer o jardim/horta em silêncio, observando o máximo de detalhes que conseguissem ver. Jardim/horta localizado nos fundos do Centro Municipal de Cultura. A versão da Ana do jardim inventado na praça por aquela senhora.
As crianças se espalharam rapidamente pelo espaço e mais rapidamente ainda se apropriaram dele. Experimentavam folhas e temperos, cheiravam flores e foram acumulando perguntas para a hora da roda de conversa. Sentamos na sombra de uma árvore para compartilhar nossas impressões. Quanto mistério cabe dentro de um jardim cultivado: “Que planta é aquela?”, “Por que ela tem aquele formato?”, “Que flor azul é essa?”, “Se ela é um bom colírio, vou levar pra minha vó, que tá com um problema nos olhos.” Algumas folhas e flores passaram de mão em mão para que a gente aprendesse sobre elas. Nos nossos dedos, iam se misturando perfumes. Guardando esse perfume, fomos para o outro momento do encontro.
Um rolo de papel branco foi estendido no chão, na sombra de uma árvore. As crianças se dividiram nos dois lados dele. A Ana tinha em mente uma outra atividade, mas quando viu a sombra da árvore “ilustrando” o papel, sugeriu que as crianças, em duplas, fizessem seus desenhos a partir dessa sombra – ou de qualquer outro elemento do jardim. Alguém da dupla segurava a folha, o ramo, o galho, a flor escolhida/o, de modo que projetasse sua sombra no papel, e a outra criança desenhava, seguindo os contornos dessa sombra. Parecia simples, mas não era tão simples. Mais um elemento da natureza estava convidado: o vento – e ele ia movimentando as sombras e interferindo nos desenhos. O aprendizado era aceitar essa interferência e incorporá-la como movimento. A natureza viva era matéria da pintura. O jogo entre imprevisto/improviso: matéria de toda vida.
Terminada essa atividade, que ocorreu entre diversas idas e vindas das duplas ao jardim e muito gosto de tempero na boca, o grupo se reuniu para a conversa de encerramento. Enquanto se organizavam, um menino começou a cantarolar o refrão de uma música do Bob Marley, que estão aprendendo na aula de música, e foi seguido pelo grupo. Foi tão bonita aquela cantoria espontânea e em grupo, parecendo ritual. Um ritual iniciado pelas crianças, antes da fala final da Ana. Chamo de fala final para fins de organização do que aconteceu. Aquele encontro não acaba e seguirá nos recomeçando, ao nos lembrar que estamos cercados de histórias. Histórias a serem vistas, ouvidas, levadas em frente, vividas. Voltei pensando que não passamos a manhã no Centro Municipal de Cultura, mas na antiga Ilhota. Passamos a manhã em uma pequena ilha de resistência, passamos a manhã em um grande era uma vez.
Obrigada, Ana – mais uma vez.
(*) Cristine é mãe da aluna Clara/4º ano, doutora em Teoria da Literatura pela PUCRS e integra projetos de formação de leitores. Ao longo de 2019, trabalhou no Projeto Nós, ligado ao Instituto Maria Dinorah (IMADIN).
(1) Saiba mais sobre essa história clicando aqui: https://lealevalerosa.blogspot.com/2017/03/ilhota.html?m=1