Andréa Coelho Paim (**)
Porto Alegre, 06 de junho de 2020.
Oi, Deia do futuro, tudo bem aí?
Falo, aqui, de junho de 2020, esperando que tenhas sobrevivido de alguma forma à pandemia. Espero que teu isolamento – que parecia que só tua família e mais alguns pouco conhecidos estavam fazendo -, tenha ajudado para que a contaminação da Covid-19 tenha sido controlada. Espero que as conversas nas praças, as rodas de chimarrão, as aglomerações de amigos possam estar acontecendo novamente.
Já se passaram mais de 80 dias e, ainda, estou longe da escola…
Nesse tempo todo, quantos sentimentos simultâneos e antagônicos me inundaram…
Quantos novos desafios se apresentaram…
Nas primeiras semanas, eu neguei a seriedade desta pausa, e parecia que logo apertaríamos o play, e tudo voltaria a ser como antes. As portas da escola se abririam e a gente voltaria correndo para dentro dela, se abraçando, se beijando, estendendo as mãos uns para os outros e correndo pelo pátio…
Precisei de mais alguns dias para me dar conta de que não seria apenas uma pausa, e mais, de que eu precisaria gravar uma nova história o mais rápido possível. Como assim, no meio de um furacão, reorganizando tantas coisas e não sabendo o que fazer com outras?
Atrizes e atores eu já tinha, mas junto com a nossa vontade, também tivemos medo… angústia… raiva… dúvidas. Por vezes transbordei, mas diferente do costume, isso não me aliviou.
Nossas certezas foram colocadas à prova, e foi preciso revê-las e aceitar que elas são sempre transitórias.
Uso de telas para crianças tão pequenas?
Como interagir através dessa tela “dura e fria”?
Como transmitir o carinho que acreditamos ser o motor do nosso dia a dia na sala de aula?
O que será da escola de educação infantil a partir de agora?
Diante de sets de filmagem organizados nas casas dos professores da equipe, vistos através da tela do meu computador, senti que estávamos construindo um possível novo jeito de fazer escola, mesmo que isso tivesse demandado muito trabalho e reflexão. A cada semana escrevíamos o roteiro, imprimindo nele o jeito de cada pessoa, e, assim, fomos gravando nossa história de maneira coletiva.
Não quero que esqueças de como essas pessoas se tornaram esse grupo tão unido, que agora deve estar aí contigo, cada vez mais potente, escrevendo o próximo filme, dessa vez de dentro da escola e no convívio as crianças.
Também preciso te contar da compreensão das pessoas aqui de casa, de eu estar presente de corpo, mas, por vezes, distante em atenção. Saiba que nosso marido começou a preparar quase todas as refeições, além de continuar a fazer as tarefas da casa. O filho, agora no nono ano, se empenhou nos estudos pelo computador e aguentou firme o isolamento físico dos amigos. Ficar longe das pessoas que gostamos está sendo difícil, sei que essa experiência ficará gravada na gente para o resto das nossas vidas, mas espero que a gente consiga conviver com essa lembrança.
Desejo que por aí as coisas tenham se organizado, que os fantasmas que hoje estão me assombrando possam ter sossegado. Tenho me esforçado para que eles se acalmem, para que não me acordem às 3h da madrugada para lembrar que está tudo fora do lugar, que eu não sei como será o dia seguinte, para avisar que não respondi aquele e-mail importante ou que não enviei o vídeo para o site, para me lembrar das pessoas da equipe que moram sozinhas e devem estar sentindo o isolamento de uma maneira mais intensa e para lamentar que nossos governantes não são os melhores que poderíamos ter neste momento.
E sobre nossos pais, por enquanto parecem estar se cuidando. Lamento não poder ficar por lá, conversando sobre diferentes assuntos e comendo aquelas comidinhas boas que só a mãe sabe fazer. Mas, à medida que o tempo foi passando, acreditas que ela arrumou marmitas para a gente buscar na escada e trazer para casa, como um carinho em forma de comida? Esta pausa de convívio com eles dói, mas eles estão bem modernos, utilizando o WhatsApp para conversarmos quase que diariamente. Já aprenderam a pagar as contas pelo aplicativo do telefone, apesar de terem trancado as senhas algumas vezes. Espero que, ao ler esta carta, vocês estejam todos na praia, curtindo juntos aquele cantinho de sossego preparado com carinho por eles.
Por aqui, tenho esperança de futuro, imaginando como deve estar tudo por aí, como construímos uma nova forma de ser e de viver, como algumas coisas tenham melhorado.
Quero que lembres que não precisamos de muita roupa para viver, que a dificuldade dos outros pode ser nossa luta também, que estar consigo mesma é um exercício de descoberta, que nossa gata sabe quando não estamos bem e deita em cima da gente a ronronar bem alto, tentando curar nosso coração, coisa que só o tempo poderá fazer.
Então, de uma distância de tempo que não sabemos qual será, desejo que aí, nesse futuro, estejam todos com saúde e felizes.
Com carinho
Deia Paim, em junho de 2020.
(*) Texto produzido a partir da proposição do projeto Memórias Docentes em Tempos de Quarentena, da Fundação Iberê Camargo, que acabou não sendo enviado para o projeto.
(**) Coordenadora da Educação Infantil da Projeto.