Susana Ventura (*)
A família da minha avó Alice era daquelas que gostava de visita, tanto de “fazer visita” quanto de “receber visita”. Estamos falando de um tempo antigo, de muitos anos atrás, quando os telefones eram fixos nas casas e a maioria não tinha telefone.
Assim, para se chegar “de visita” havia assim umas “regrinhas não escritas”, mas que todo mundo sabia: visita se fazia aos finais de semana e sempre fora do horário do almoço ou do jantar, para não atrapalhar a família visitada. Desse jeito, os meios de tarde eram sempre a ocasião propícia para “aparecer”.
Os que chegavam de visita na casa da minha avó eram sempre motivo de alegria e a mesa grande que ficava na cozinha da casa se enchia, rapidamente, com o que houvesse para o lanche que logo se montava sobre ela: um pedaço de bolo, frutas que tivessem sido colhidas no quintal, queijo, margarina, geleia, pão de forma. O chá era de erva-doce ou hortelã, que cresciam a dois passos da porta da cozinha, num quintal enorme, em que havia de tudo um pouco.
Há muito tempo eu não desfrutava de uma alegria tão boa quanto a que reinava naquelas tardes antigas de visita, quando, após uns tantos goles de chá, a conversa revelava camadas de acontecimentos, pedaços faltantes de histórias começadas em outros encontros e um sem número de pequenas e significativas revelações que, ainda hoje, continuam a ser rememoradas.
Muito tempo até a visita que fiz, por três dias, à Escola Projeto. Três dias, como nos contos de fadas que tanto amo, em que tudo acontece aos três, aos sete, aos nove: três princesas, três provas difíceis, sete cabeças de dragão para enfrentar, nove pontes a atravessar…
Pois tive meus três dias visitando a Escola Projeto e que se tornarão, em minha memória, muitos pequenos momentos felizes que possivelmente vão se espalhar pela escrita de páginas e livros que atravessarão os anos e os países para pousarem diante de gente leitora que não esteve, como eu, na escola no mês de maio de 2023 mas que estará diante da espécie de poeira de estrelas que emana dos livros e que nos faz parentes de irmãos que não são nossos, viajantes de cidades onde não estivemos e habitantes de casas que só existem no mundo de palavras.
No primeiro dia de visita eu conversei com as pessoas adultas da escola e ali falei sobre o que chamei de “atravessamentos” que ocorrem quando estou indo ao encontro das comunidades de leitores e que são questões que a realidade me coloca quando estou ao mesmo tempo concentrada e pensando, em movimento para falar sobre livros. A escritora sair de casa para conversar sobre o que escreve é um momento especial e aguardado, já que o ofício de escrever é solitário. Em geral é no caminho que acontecem essas coisas que chamo de “atravessamentos” (eu não deveria estranhar, uma vez que aconteceu o mesmo com Chapeuzinho Vermelho, mas até escrever esse texto eu não havia percebido a coincidência…).
O segundo dia foi para conversar com as crianças com tempo e nele pude ouvir, responder perguntas e pensar. Preciso contar a vocês que, em encontros com jovens leitores eu procuro dizer sempre a verdade ao responder, porque acho importante demais a gente contar as coisas com precisão a quem está começando nesse caminho que é viver, ler e respirar também dentro dos livros (que são, muitas vezes, como um território de fundo de mar, belo, misterioso e exigente).
O terceiro dia foi de festa completa: encontrar a comunidade da Projeto toda junta e comer um de meus pratos favoritos com vocês (sim, amo carreteiro e o da Cantina BananaMaçã é muito maravilhoso). As salas temáticas, a fantástica máquina de capas de livros, as personagens que estiveram conosco nos corredores e pátios, a música e os cheiros e luzes me fizeram feliz na mesma intensidade que as visitas aos melhores museus haviam me propiciado. (Arrisco dizer que o cheiro das folhas secas e as luzes da sala dos contos de fadas foi verdadeiramente uma máquina do tempo que me levou de volta às salas que visitei quando criança e que me encantaram permanentemente).
Não sei como, mas a equipe da escola talvez possa explicar a quem ler esse texto, o tempo se alongou muito no sábado, porque conversei muito, ouvi, falei, autografei, ri, lanchei, almocei, passeei e acho que não é possível que tudo o que aconteceu coubesse entre as 9h30 e as 17 horas que estavam no convite para a Feira de Livros…
Assim foi a minha visita, boa como as que vivi com as pessoas que, na minha infância, passaram pela casa da minha avó, numa cidade muito pequena de São Paulo e que, por coincidência se chama Poá, um nome indígena que significa “Riacho da Pedra Redonda”. De Poá para POA, as visitas na minha vida continuam, por sorte, a ser magníficas.
(*) Autora convidada de 2023, que teve sua obra lida e estudada pelas turmas da Projeto e que esteve conosco na 35ª Feira do Livro da Escola, no último fim de semana.