Fabiana Sasi (2)
O que dizer para quem generosamente se dispõe a partilhar?
Será que ela dimensiona como sua existência vai reverberando em luz e força na vida de tanta gente?
Eu escolho começar com uma palavra de uma das línguas faladas em Angola para exprimir agradecimento: SAKIDILA
Original do quimbundo, ela significa gratidão pela vida, gratidão por tudo.
À bênção de ter a Gládis Kaercher conosco, podemos acrescentar nossa gratidão por tanto. Na primeira segunda-feira do mês de agosto, o mês de Omolu/Obaluaê (3), ela pisa nesse chão da escola para nos trazer cura. E não por acaso esse agradecimento acontece de ser publicado no dia 16 de agosto, o dia dele, do orixá da cura.
Porque o racismo é uma doença social a ser curada.
Recebemos a visita de uma doutora, não da área médica, a Gládis Kaecher é aquela que cuida através da educação. E ela veio com todo o aprendizado que traz consigo nos encher de uma crença potente de que é possível tratar dessas questões essenciais para a construção de uma sociedade mais justa.
Gládis atendeu ao pedido do NAMP (Núcleo Antirracista e Multicultural da Escola Projeto) para estar presente entre corpo diretivo, docente, funcional, com mães, pais e responsáveis pela educação dos alunos e alunas da escola numa conversa corajosa, e, por vezes, desconfortável. Assim como alguns tratamentos que exigem rupturas de hábitos, feridas que pedem novas costuras, cortes que precisam ser pontuados. Tratamentos que são compostos por muitas pílulas, e Gládis nos trouxe várias que mais pareciam pérolas. Seu discurso forte e amoroso nos faz crer que com arte e educação podemos preparar unguentos poderosos que ajudam a restaurar relações étnico-raciais tão adoecidas.
“A arte é a religião da Projeto”
Gládis Kaercher
Essa fala da Gládis, proferida na nossa sala multiuso, tem muito a ver com a multiculturalidade trazida nas propostas pedagógicas da escola desde a sua fundação. É na arte que nós encontramos o outro, esse ser diferente, de quem muitas vezes somos ensinados a nos afastar para nos defender ou nos preservar. Por aqui é a arte o fio condutor que faz pensar, que aproxima, faz sentir e dá sentido às ações educativas. E Gládis retoma em sua fala essa potência do fazer artístico na efetivação das leis 10.639/03 e 11.645/08, que torna obrigatória a inclusão da história e da cultura afro-brasileira e indígena nos currículos da educação brasileira.
Mas, por aqui, essa obrigação da promoção da igualdade racial tem se tornado uma missão. E foi também a Gládis quem deu a primeira injeção de ânimo para que viesse a se concretizar o NAMP no final do ano letivo de 2022. Ela veio como vento forte para dissipar as tensões. Era emergencial pensar como o corpo docente da escola poderia criar estratégias para mediar situações de violência racial. Como ajudar as crianças a compreenderem questões tão estruturantes da nossa sociedade? E assim surge o nosso NAMP, pois entendemos que a educação antirracista é um tratamento contínuo que jamais deve ser abandonado.
Que possamos contar com a consulta dessa doutora muitas outras vezes, dessa especialista em gente que restaura nossa essência através da palavra.
Gládis é o tipo de pessoa que pode mudar o mundo. E transbordamos de felicidade por ela seguir acreditando que é possível.
Podem perceber que temos muito a agradecê-la.
Sakidila, Gládis!
(1) Gládis é mãe de um ex-aluno e de uma ex-aluna da Projeto, além de professora da UFRGS.
(2) Mãe de aluno e participante ativa do NAMP, Fabiana é radialista, cozinheira, escritora e aluna de jornalismo na UFRGS.
(3) Segue aqui, para conhecerem, o Mito do Omulu, retirado do livro “Mitologia dos Orixás”, de Reginaldo Prandi, 2001:
“Quando Omulu era um menino de uns doze anos, saiu de casa e foi para o mundo para fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia oferecendo seus serviços, procurando emprego.
Mas Omulu não conseguia nada.
Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém lhe empregava.
E ele teve que pedir esmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem do que beber.
Tinha um cachorro que o acompanhava e só.
Omulu e seu cachorro retiraram-se no mato e foram viver com as cobras.
Omulu comia o que a mata dava: frutas, folhas, raízes.
Mas os espinhos da floresta feriam o menino.
As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo.
Omulu ficou coberto de chagas.
Só o cachorro confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas.
Um dia, quando dormia, Omulu escutou uma voz: “Estás pronto. Levanta e vai cuidar do povo.”
Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas.
Não tinha dores nem febre.
Obaluaê juntou as cabacinhas, os atós, onde guardava água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorum e partiu.
Naquele tempo uma peste infestava a Terra.
Por todo lado estava morrendo gente.
Todas as aldeias enterravam os seus mortos.
Os pais de Omulu foram ao babalaô e ele disse que Omulu estava vivo e que ele traria a cura para a peste.
Todo lugar aonde chegava, a fama precedia Omulu.
Todos esperavam com festa, pois ele curava.
Os que antes lhe negaram até mesmo água para beber.
Ele curava todos, afastava a peste.
Então dizia que se protegessem, levando na mão uma folha de dracena, o peregum, e pintando a cabeça com efum, ossum e uági, os pós branco, vermelho e azul usados nos rituais e encantamentos.
Curava os doentes e com o xaxará varria a peste para fora da casa, para que a praga não pegasse outras pessoas da família.
Limpava casas e aldeias com a mágica vassoura de fibras de coqueiro, seu instrumento de cura, seu símbolo, seu cetro, o xaxará.
Quando chegou em casa, Omulu curou os pais e todos estavam felizes.
Todos cantavam e louvavam o curandeiro e todos o chamaram de Obaluaê, todos davam viva ao Senhor da Terra, Obaluaê.”
Atotô!!! (Saudação a Omulu)